Decidiu o Supremo Tribunal Federal que A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, [...] desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio.
Mas o que seria discurso de ódio
e qual a lei que tipificaria o crime de homofobia?
A defesa de valores sociais, fora
do espaço teológico, seria criminalizada e considerada discurso de ódio?
O mesmo Supremo Tribunal Federal
definiu que o chamado Discurso de Ódio engloba aquelas
exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência
contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.
E mais, ainda: definiu que discursos de ódio homofóbicos ou transfóbicos devem
ser enquadrados nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89 (Lei
Antirracismo).
Dentre os mencionados diversos
tipos penais (artigos que definem crimes) existentes nessa lei, o mais próximo
de ocorrência e aplicabilidade seria o seu artigo 20, que sujeita o autor a uma
pena de reclusão de 1 a 3 anos, na sua forma simples, e de 2 a 5 anos, na forma
qualificada, quando é cometido por intermédio dos meios de comunicação social
ou publicação de qualquer natureza, e assim é definido: Art. 20. Praticar,
induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional.
Algumas questões jurídicas são
inevitáveis na abordagem ao tema; os limites à liberdade de manifestação do
pensamento, à liberdade de consciência e crença e à liberdade artística,
intelectual, científica e de comunicação estariam atingidos pela decisão do
Supremo Tribunal Federal, abrindo espaço para que cidadãos (especialmente
aqueles que se declaram conservadores), líderes e fiéis religiosos, comunidade
artística (em particular humoristas), membros das comunidades acadêmicas (intelectuais
e cientistas) e a imprensa possam responder criminalmente pela expressão
pública de suas convicções, fé, anedotário, pesquisas, teses e editoriais?
A resposta é não! Afinal, lida
com atenção a decisão do STF fica evidente que a Corte definiu essa espécie de
homofobia e transfobia discursiva tão somente quando dirigida a incitar a
discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua
orientação sexual ou de sua identidade de gênero; não se trata, pois, de
uma censura judicial a qualquer outra forma de expressão de ideias, como se propala
aos quatro cantos, seja pelos ativistas e simpatizantes do antigo movimento
GLS, evoluído para a moderna nomenclatura LGBTQIA+ ou LGBTQQICAPF2K+, ou por
aqueles que definem conservadores.
O que se declara ilegal são os
comportamentos que estimulam a discriminação, a hostilidade e a violência
contra essa parcela [ainda] menor da sociedade e não a defesa de modelos
culturais socialmente adotados pela [ainda] maioria heterossexual monogâmica. Tampouco
parece haver na decisão da Suprema Corte, qualquer apologia a uma nova ordem de
costumes, em detrimento do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da
família, estabelecido pelo artigo 221, IV, ou, relativamente às crianças e adolescentes,
à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, estabelecido pelo artigo 227,
§ 3º, V, da Constituição Federal.
Noutras palavras, se disse não aos
discursos de ódio, sem fazer apologia a qualquer forma diversa de expressão da
sexualidade humana.
Tanto isso fica evidente, que o
julgado assentou textualmente que: A repressão penal à prática da
homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade
religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos
fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos
muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre
outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela
palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar
suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos
sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou
teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e
respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua
atuação individual ou coletiva.
É assente que a sexualidade é
toda envolta em tabus, o que faz do tema um terreno minado difícil de ser
encarado e transposto, não só pelos que professam costumes baseados em crenças
religiosas, mas por todos nós; daí porque, geralmente é pela arte que a
abordagem lúdica se mostra mais aceita.
Nesse campo, num julgado
relativamente recente (STF. Habeas Corpus 83996-DF, julgado em 17 de agosto de
2004) o Ministro Gilmar Mendes, lembrando antigos julgados dos saudosos
Ministros Aliomar Baleeiro e Evandro Lins e Silva, destacou que o conceito
de obsceno, imoral, contrário aos bons costumes é condicionado ao local e à
época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo
que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores;
cuidava-se de uma peça teatral onde uma atora se masturbava num divã diante da
plateia, o que gerou processo criminal por ato obsceno.
E parece-nos que nesse mesmo
espaço de liberdade de expressão – ou de não ilicitude penal ou civil – se
encaixa o humorismo, ainda que dirigido à satirização de qualquer forma de
expressão da sexualidade; enfrentando esse tema (humor artístico), no mesmo
Supremo Tribunal já houve ministro que parodiasse dizendo: Mas, vedar o
humor? Isso é uma piada. Isso aconteceu no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4451-DF, onde ficou registrado que O humor e o
riso, bem por isso, são meios que denotam expressões reveladoras de verdadeira
metáfora das liberdades. [...] são transformadores, são renovadores, são
saudavelmente subversivos, são esclarecedores, são reveladores.
Restou então ali textualmente declarada
a proteção ao humor, como uma forma de expressão artística que imuniza o
meio pelo qual se expõe, seja ele o teatro, o cinema ou a televisão, e os meios
de sua exposição, impedindo a responsabilização civil ou criminal dessa
categoria de artistas.
Ainda assim, isso não pode ser
entendido como um alvará judicial absoluto para o já bem definido discurso de
ódio homofóbico; outro prudente indicador de limites ao próprio artista é o
respeito à dignidade humana que, a despeito de se tratar de um conceito assaz impreciso,
nossa particular consciência – a mais justa juíza de nossos atos – nos dá
ferramentas para sondagem e julgamento a partir de um sincero exercício de
empatia.
Talvez seja momento de os
integrantes e simpatizantes do movimento LGBTQIA+, comunidades jurídica e
artística, meios de comunicação social e sociedade civil demonstrarem mais
respeitos uns aos costumes, valores e direitos dos outros, revelando uma
verdadeira evolução humana em que se não simplesmente admita o diverso, mas que
se lhe poupe de qualquer forma de imposição de costumes, seja pelas ditas
maiorias às minorias, quanto destas àquelas.
Uma questão ainda ficou pendente:
poderia o Supremo Tribunal em matéria penal substituir o legislador e
criminalizar um comportamento indesejado sem que haja expressa disposição
legal, criando um crime de homofobia?
Como Advogado e professor de
Direito Penal há 23 anos digo que não; e sinto-me honrado em acompanhar o
posicionamento da douta minoria do Supremo Tribunal Federal (Marco Aurélio, Ricardo
Lewandowski e Dias Toffoli) que assim votou, em 13 de junho de 2019, na Ação
Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, respeitando o princípio
constitucional da reserva legal (Art. 5º. XXXIX: não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal), de tal sorte
que descabido usar a Lei Antirracismo para definir como crime a homofobia,
quando a lei não cuida desta forma de discriminação sendo clara: Serão
punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.