De triste recordação o dia 27 de janeiro de 2013, quando um incêndio na Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, vitimou fatalmente 242 pessoas e deixou outras 636 feridas; aqui quero discutir três pontos:
De triste recordação o dia 27 de
janeiro de 2013, quando um incêndio na Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa
Maria, vitimou fatalmente 242 pessoas e deixou outras 636 feridas; aqui quero discutir
três pontos: (1) a demora do processo; (2) o conceito de dolo e culpa; e (3) a
decisão do Ministro Luiz Fux.
Ponto 1: a
demora do processo
Foram perto
de 7 anos entre a tragédia e o julgamento; o próprio juiz Orlando Faccini Neto lamentou
em sua sentença o descrédito no sistema de justiça, dizendo que o Diagnóstico
das ações penais de competência do Tribunal do Júri, feito pelo
Conselho Nacional de Justiça em 2019, revelou que os julgamentos pelo júri
levam de 7 a 10 anos para acontecer e que, na média nacional, cerca de 35% dos
casos, esse julgamento nem acontece, porque o crime caduca (como diriam
os antigos; prescrição é o termo técnico), à mercê de uma série de recursos
processuais da defesa.
De fato, no
mais das vezes, é a defesa que maneja uma série de recursos em favor do réu,
mas certamente não é só isso que leva à demora dos processos; se os juízes
criminais, ao cumprirem simplesmente a jornada de um trabalhador comum (8h
diárias e 44h semanais), organizassem sua pauta de audiências para todas as
manhãs e tardes dos dias úteis (e não só algumas tardes, como mais ocorre...),
certamente não se veria, num mesmo processo, um intervalo de meses (em alguns
casos anos...); de igual forma, se nos tribunais de apelação, fosse adotada a
mesma prática, certamente diminuiríamos em muito a demora dos processos; a
refletir ou contraditar...
Nesse ponto,
é evidente que a defesa lança mão exatamente dessas clássicas falhas do próprio
Poder Judiciário que, se fossem superadas, a partir de um modelo de gestão
voltada para a eficiência (princípio constitucional da Administração Pública),
inviabilizariam esse tipo de estratégia defensiva.
Ponto 2: o
conceito de dolo eventual e culpa consciente
No Tribunal
do Júri são os 7 jurados que, por maioria e em votação secreta, dão o chamado veredicto;
esse veredicto não é uma sentença, mas uma resposta objetiva, na forma
de um singelo e importantíssimo sim ou um não às perguntas (quesitos)
que o juiz presidente lhes apresenta da sala de votação; esses quesitos (perguntas
aos jurados) são formulados a partir das teses – geralmente opostas –
sustentadas pela Defesa e pela Acusação. Algo mais ou menos assim: Os réus assumiram
o risco de causar a morte das vítimas? Responda sim ou não. É
então, a partir dessas respostas, que o juiz presidente simplesmente declara a
decisão soberana dos jurados e, no caso de condenação, faz a chamada dosagem
da pena (esse sim um algo muito técnico e que exige fundamentação a cada
uma das 3 etapas; adotamos o chamado sistema trifásico; mas isso fica
para outra aula...).
Pois bem,
tendo os jurados decretado o veredicto, coube ao juiz Orlando Faccini Neto
calcular e aplicar a pena cabível e, para fazê-lo, vê-se em sua sentença que um
ponto central de sua decisão é a reprovação na conduta dos réus, quanto à primazia
à razão econômica, desde a aquisição de materiais até a imposição de
dificuldades para a saída das vítimas; com isso ele afere subjetivamente a
chamada culpabilidade dos réus (grau de reprovação social ao crime).
Outra
questão central é a crescente tendência de juízes, promotores de justiça e, infelizmente,
até de professores de Direito, em adotarem o chamado dolo indireto
(teoria do assentimento), em suas modalidades de dolo eventual ou dolo
alternativo, no lugar da culpa consciente, no julgamento de casos
semelhantes a esse; especialmente quando há grande repercussão midiática.
Pode parecer
algo muito técnico, mas um pouquinho de atenção permitirá que se compreenda bem
cada um desses conceitos.
Chamamos dolosa
a conduta em que o agente quer obter um resultado (por exemplo: quero incendiar
a boate para matar as pessoas), como também, aquela quando essa pessoa se
orienta mentalmente para praticar a própria conduta, assumindo o risco de
causar o resultado (por exemplo: eu não quero incendiar a boate e, menos
ainda, causar a morte das pessoas); quando nenhuma dessas coisas acontece,
mas mesmo assim o resultado ocorre por imperícia ou – como no caso da Boate
Kiss – por negligência (desatenção à normas de proteção anti-incêndio)
e imprudência (queima de fogos de artifício em ambiente fechado),
temos o chamado crime culposo e, dentro dessa categoria, uma subespécie
em que o resultado trágico, mais que simplesmente previsível é até previsto
pelo indivíduo que, mesmo assim, mantém-se imprudente, imperito e/ou negligente,
com firme e convicta esperança de que não aconteça.
Lançando mão
de um mero recurso didático (certamente nada refinado), costumo dizer
aos meus alunos que no dolo eventual o indivíduo pensa antes de agir
assim: se acontecer o pior, fo...a-se; já no caso de culpa consciente,
ele age imprudentemente e, quando se depara com a tragédia sua reação é: vixe,
fu...eu...
Numa
autoparódia talvez valha concluir que o f...da é que entre ser condenado
por um crime doloso e um crime culposo a distância é estratosférica (a pena
máxima do homicídio é de 3 anos quando culposo e de 30 anos se doloso...).
Ocorre –
sempre sustento no plano acadêmico – que se adotarmos que toda conduta
negligente ou imprudente revela um assumir o risco do resultado, não haverá
mais sentido lógico para a existência de crimes culposos; a partir disso – sigo
sustentando – o que se quer quando se desvia da lógica é um algo não
civilizado: uma vingança pública, quase um linchamento legitimado pelos
tribunais, eu diria em tom retórico.
Ponto 3: voltas
e reviravoltas; a questionável decisão do ministro Luiz Fux
Acontece que
a defesa dos réus impetrou um habeas corpus junto ao Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul e, antes mesmo que fosse anunciado o veredicto dos jurados
condenando os 4 réus, exatamente às 17h49 daquele dia, o desembargador gaúcho Manuel
José Martinez Lucas decretou ao juiz Orlando Faccini Neto: em caso de
condenação pelo Conselho de Sentença, se abstenha de decretar a prisão do
paciente Elissandro Callegaro Spohr, estendendo a orem aos corréus Mauro
Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
E assim
aconteceu; ao ler publicamente a sentença, como determina a lei, o juiz Orlando
Faccini Neto registrou: estou determinando a imediata execução das penas
impostas aos acusados, de maneira que, em seu desfavor, devem ser expedidos os
competentes mandados de prisão. [...] Ao término da leitura dessa decisão,
recebi a notícia acerca da concessão da liminar em habeas corpus preventivo
impetrado pela Defesa de Elissandro, estendendo-se os efeitos aos demais réus Mauro,
Marcelo e Luciano, de modo que, mantenho a decisão, porém, suspendo a execução
da pena.
Estando
condenados, porém ainda livres os réus, o Ministério Público recorreu ao
Supremo Tribunal Federal, contra a decisão do desembargador Manuel José
Martinez Lucas, quando então, no dia 14 de dezembro, o ministro Luiz Fux
reverteu o quadro determinando a imediata execução do veredicto dos jurados e da
sentença do juiz Orlando Faccini Neto, ao argumento de que permitir que os réus
recorressem em liberdade levaria a grave comprometimento à ordem e à
segurança pública, além de violar precedentes do Supremo Tribunal
Federal e a dicção legal explícita do artigo 492, §4º, Código de Processo Penal;
finaliza o ministro determinando que deve prevalecer a determinação do
Tribunal de Júri de execução imediata das penas impostas aos réus, nos termos
do artigo 492, inciso I, alínea "e”, do Código de Processo Penal.
Quanto à
decisão do Ministro Fux, a primeira explicação para que se compreenda bem a
questão é uma breve passagem pela Lei nº 13.964, de 2019 – o chamado Pacote
Anticrime (do ex-ministro Sérgio Moro) – tão somente no ponto em que ela incluiu,
no artigo 492 no Código de Processo Penal, uma então nova regra de que o magistrado
que preside do Tribunal do Júri mandará o acusado recolher-se ou
recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da
prisão preventiva, ou, no caso de condenação, a uma pena igual ou superior a 15
anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição de
mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento dos recursos que
vierem a ser interpostos.
Todavia, é
de se estranhar – para dizer o mínimo – os fundamentos adotados pelo ministro
Fux, quando se lembra ter sido o próprio Supremo Tribunal Federal que, ao
julgar as Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, no dia 07
de novembro de 2019, disse exatamente o contrário e repudiou a chamada execução
provisória da pena (antes do trânsito em julgado), abrindo as portas da
cela do ex-presidente Lula...
Registre-se,
por justiça, dois pontos: (1) naquela ocasião não havia ainda sido aprovada a
lei do Pacote Anticrime, que viria em 24 de dezembro de 2019; e (2) Fux
votou a favor da execução provisória da pena e foi voto vencido no
julgamento daquelas Ações Declaratórias de Constitucionalidade.
Em tempo
(nada a ver com o tema, mas tudo a ver com a época):