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Azor Lopes da Silva Júnior

Advogado, professor universitário e jornalista


Judiciário, justiça e mídia: O caso da Boate Kiss

Por: Azor Lopes da Silva Júnior
23/12/2021 às 09:32
Azor Lopes da Silva Júnior

De triste recordação o dia 27 de janeiro de 2013, quando um incêndio na Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, vitimou fatalmente 242 pessoas e deixou outras 636 feridas; aqui quero discutir três pontos: 

De triste recordação o dia 27 de janeiro de 2013, quando um incêndio na Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, vitimou fatalmente 242 pessoas e deixou outras 636 feridas; aqui quero discutir três pontos: (1) a demora do processo; (2) o conceito de dolo e culpa; e (3) a decisão do Ministro Luiz Fux.

Ponto 1: a demora do processo

Foram perto de 7 anos entre a tragédia e o julgamento; o próprio juiz Orlando Faccini Neto lamentou em sua sentença o descrédito no sistema de justiça, dizendo que o Diagnóstico das ações penais de competência do Tribunal do Júri, feito pelo Conselho Nacional de Justiça em 2019, revelou que os julgamentos pelo júri levam de 7 a 10 anos para acontecer e que, na média nacional, cerca de 35% dos casos, esse julgamento nem acontece, porque o crime caduca (como diriam os antigos; prescrição é o termo técnico), à mercê de uma série de recursos processuais da defesa.

De fato, no mais das vezes, é a defesa que maneja uma série de recursos em favor do réu, mas certamente não é só isso que leva à demora dos processos; se os juízes criminais, ao cumprirem simplesmente a jornada de um trabalhador comum (8h diárias e 44h semanais), organizassem sua pauta de audiências para todas as manhãs e tardes dos dias úteis (e não só algumas tardes, como mais ocorre...), certamente não se veria, num mesmo processo, um intervalo de meses (em alguns casos anos...); de igual forma, se nos tribunais de apelação, fosse adotada a mesma prática, certamente diminuiríamos em muito a demora dos processos; a refletir ou contraditar...

Nesse ponto, é evidente que a defesa lança mão exatamente dessas clássicas falhas do próprio Poder Judiciário que, se fossem superadas, a partir de um modelo de gestão voltada para a eficiência (princípio constitucional da Administração Pública), inviabilizariam esse tipo de estratégia defensiva.

 

Ponto 2: o conceito de dolo eventual e culpa consciente

No Tribunal do Júri são os 7 jurados que, por maioria e em votação secreta, dão o chamado veredicto; esse veredicto não é uma sentença, mas uma resposta objetiva, na forma de um singelo e importantíssimo sim ou um não às perguntas (quesitos) que o juiz presidente lhes apresenta da sala de votação; esses quesitos (perguntas aos jurados) são formulados a partir das teses – geralmente opostas – sustentadas pela Defesa e pela Acusação. Algo mais ou menos assim: Os réus assumiram o risco de causar a morte das vítimas? Responda sim ou não. É então, a partir dessas respostas, que o juiz presidente simplesmente declara a decisão soberana dos jurados e, no caso de condenação, faz a chamada dosagem da pena (esse sim um algo muito técnico e que exige fundamentação a cada uma das 3 etapas; adotamos o chamado sistema trifásico; mas isso fica para outra aula...).

Pois bem, tendo os jurados decretado o veredicto, coube ao juiz Orlando Faccini Neto calcular e aplicar a pena cabível e, para fazê-lo, vê-se em sua sentença que um ponto central de sua decisão é a reprovação na conduta dos réus, quanto à primazia à razão econômica, desde a aquisição de materiais até a imposição de dificuldades para a saída das vítimas; com isso ele afere subjetivamente a chamada culpabilidade dos réus (grau de reprovação social ao crime).

Outra questão central é a crescente tendência de juízes, promotores de justiça e, infelizmente, até de professores de Direito, em adotarem o chamado dolo indireto (teoria do assentimento), em suas modalidades de dolo eventual ou dolo alternativo, no lugar da culpa consciente, no julgamento de casos semelhantes a esse; especialmente quando há grande repercussão midiática.

Pode parecer algo muito técnico, mas um pouquinho de atenção permitirá que se compreenda bem cada um desses conceitos.

Chamamos dolosa a conduta em que o agente quer obter um resultado (por exemplo: quero incendiar a boate para matar as pessoas), como também, aquela quando essa pessoa se orienta mentalmente para praticar a própria conduta, assumindo o risco de causar o resultado (por exemplo: eu não quero incendiar a boate e, menos ainda, causar a morte das pessoas); quando nenhuma dessas coisas acontece, mas mesmo assim o resultado ocorre por imperícia ou – como no caso da Boate Kiss – por negligência (desatenção à normas de proteção anti-incêndio) e imprudência (queima de fogos de artifício em ambiente fechado), temos o chamado crime culposo e, dentro dessa categoria, uma subespécie em que o resultado trágico, mais que simplesmente previsível é até previsto pelo indivíduo que, mesmo assim, mantém-se imprudente, imperito e/ou negligente, com firme e convicta esperança de que não aconteça.

Lançando mão de um mero recurso didático (certamente nada refinado), costumo dizer aos meus alunos que no dolo eventual o indivíduo pensa antes de agir assim: se acontecer o pior, fo...a-se; já no caso de culpa consciente, ele age imprudentemente e, quando se depara com a tragédia sua reação é: vixe, fu...eu...

Numa autoparódia talvez valha concluir que o f...da é que entre ser condenado por um crime doloso e um crime culposo a distância é estratosférica (a pena máxima do homicídio é de 3 anos quando culposo e de 30 anos se doloso...).

Ocorre – sempre sustento no plano acadêmico – que se adotarmos que toda conduta negligente ou imprudente revela um assumir o risco do resultado, não haverá mais sentido lógico para a existência de crimes culposos; a partir disso – sigo sustentando – o que se quer quando se desvia da lógica é um algo não civilizado: uma vingança pública, quase um linchamento legitimado pelos tribunais, eu diria em tom retórico.

 

Ponto 3: voltas e reviravoltas; a questionável decisão do ministro Luiz Fux

Acontece que a defesa dos réus impetrou um habeas corpus junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e, antes mesmo que fosse anunciado o veredicto dos jurados condenando os 4 réus, exatamente às 17h49 daquele dia, o desembargador gaúcho Manuel José Martinez Lucas decretou ao juiz Orlando Faccini Neto: em caso de condenação pelo Conselho de Sentença, se abstenha de decretar a prisão do paciente Elissandro Callegaro Spohr, estendendo a orem aos corréus Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

E assim aconteceu; ao ler publicamente a sentença, como determina a lei, o juiz Orlando Faccini Neto registrou: estou determinando a imediata execução das penas impostas aos acusados, de maneira que, em seu desfavor, devem ser expedidos os competentes mandados de prisão. [...] Ao término da leitura dessa decisão, recebi a notícia acerca da concessão da liminar em habeas corpus preventivo impetrado pela Defesa de Elissandro, estendendo-se os efeitos aos demais réus Mauro, Marcelo e Luciano, de modo que, mantenho a decisão, porém, suspendo a execução da pena.

Estando condenados, porém ainda livres os réus, o Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal Federal, contra a decisão do desembargador Manuel José Martinez Lucas, quando então, no dia 14 de dezembro, o ministro Luiz Fux reverteu o quadro determinando a imediata execução do veredicto dos jurados e da sentença do juiz Orlando Faccini Neto, ao argumento de que permitir que os réus recorressem em liberdade levaria a grave comprometimento à ordem e à segurança pública, além de violar precedentes do Supremo Tribunal Federal e a dicção legal explícita do artigo 492, §4º, Código de Processo Penal; finaliza o ministro determinando que deve prevalecer a determinação do Tribunal de Júri de execução imediata das penas impostas aos réus, nos termos do artigo 492, inciso I, alínea "e”, do Código de Processo Penal.

Quanto à decisão do Ministro Fux, a primeira explicação para que se compreenda bem a questão é uma breve passagem pela Lei nº 13.964, de 2019 – o chamado Pacote Anticrime (do ex-ministro Sérgio Moro) – tão somente no ponto em que ela incluiu, no artigo 492 no Código de Processo Penal, uma então nova regra de que o magistrado que preside do Tribunal do Júri mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação, a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição de mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento dos recursos que vierem a ser interpostos.

Todavia, é de se estranhar – para dizer o mínimo – os fundamentos adotados pelo ministro Fux, quando se lembra ter sido o próprio Supremo Tribunal Federal que, ao julgar as Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, no dia 07 de novembro de 2019, disse exatamente o contrário e repudiou a chamada execução provisória da pena (antes do trânsito em julgado), abrindo as portas da cela do ex-presidente Lula...

Registre-se, por justiça, dois pontos: (1) naquela ocasião não havia ainda sido aprovada a lei do Pacote Anticrime, que viria em 24 de dezembro de 2019; e (2) Fux votou a favor da execução provisória da pena e foi voto vencido no julgamento daquelas Ações Declaratórias de Constitucionalidade.

Em tempo (nada a ver com o tema, mas tudo a ver com a época):

Feliz Natal, queridos leitores e amigos!






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