William Shakespeare escreve em 1603 A Trágica História de Hamlet - Príncipe de Dinamarca, d’onde surge a fala Something is rotten in the state of Denmark (Algo está podre no Reino da Dinamarca), dita por Marcelo, em diálogo com seu colega de guarda militar (Horácio), enquanto o príncipe Hamlet seguia o fantasma de seu pai (o Rei Hamlet).
No Rio de Janeiro, Flávio Nantes
Bolsonaro foi denunciado pelo Ministério Público por 1.803 condutas tidas por
peculato, em concurso material com distintas acusações de lavagem de dinheiro e
organização criminosa, pela chamada prática da Rachadinha; enquanto
isso, aqui nas Terras de São José, 11 vereadores, 34 assessores
legislativos e 1 secretário municipal (vereador licenciado) são investigados
por prática idêntica a partir de uma denúncia anônima.
Antes de enfrentar a questão
central, talvez fosse o caso de a sociedade brasileira – e porque não a
sociedade rio-pretense também – refletirem o que explica a existência de agentes
públicos não concursados na estrutura dos governos e poderes federais,
estaduais e municipais...
O fundamento legal é simples: de
um lado, a Constituição Federal determina a regra de que a investidura em
cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de
provas ou de provas e títulos, porém, logo adiante, flexibiliza essa regra
com a ressalva à nomeações para cargo em comissão declarado em lei de
livre nomeação e exoneração... Grifamos a expressão declarado em lei,
porque o legislador constituinte deixou que, essas exceções à regra de investidura
em cargo público, ficassem a ser definidas pelo chamado legislador ordinário
(não elaborador da norma constitucional).
É, nesse ponto, que a causa
primária do problema se mostra não tão distante (nos governos federal e
estadual), mas sim habita entre nós – nos nossos próprios municípios – quando
seus vereadores e prefeitos criam leis, simplesmente para distribuir cargos capazes
de acomodar seus correligionários políticos, candidatos com votação expressiva
(porém não eleitos) e cabos eleitorais (captadores de votos).
A exigência constitucional de
concurso público, concurso publico de provas ou de provas e títulos não é mera
regra adotada arbitrariamente, mas parte de uma lógica de se universalizar
republicanamente o acesso aos cargos públicos a quem queira ocupá-los, selecionando-se
dentre eles os mais preparados, de acordo com a natureza e a complexidade do tal
cargo ou emprego, e isto por meio de critérios objetivos; n’outras palavras, sem
apadrinhamento.
A conclusão é óbvia: não fosse
a existência de leis municipais, estaduais e federais criando os tais cargos de
livre nomeação, não teríamos apadrinhamentos a custa de dinheiro público,
acomodação não republicana de correligionários em cargos absolutamente
dispensáveis à máquina pública e, por que não dizer, a conduta improba de se nomear
uma pessoa em troca de parte de seu salário...
Como mudar isso? Uma forma é
esperar que prefeitos e vereadores (também deputados federais, estaduais e
senadores) revoguem cada uma das leis que criaram esses cargos; outra forma é a
apresentação desses mesmos projetos nessas Casas Legislativas, na forma de Projeto
de Lei de Iniciativa Popular.
A iniciativa popular de leis
federais depende, segundo dispõe o artigo 61, § 2º, da Constituição Federal, assinatura
de, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por 5 Estados,
com não menos de 3% dos eleitores de cada um destes Estados; no Estado de São
Paulo, o artigo 24, § 3º, 1, de sua Constituição Estadual exige 5% do
eleitorado subscrevendo um projeto de lei de iniciativa popular.
Em nossa querida São José do Rio
Preto, pelo que dispõe sua Lei Orgânica (Art. 39), um projeto de lei nesse
sentido deve(ria) vir sob forma de moção articulada e subscrita por ao menos 5%
do eleitorado, ou seja 16.561 de seus 331.215 eleitores (dados
referentes ao mês de agosto de 2021 – Fonte: Tribunal Regional Eleitoral de São
Paulo); veja-se, então, como é difícil mobilizar a sociedade para convergirem
16.561 eleitores num projeto de lei de iniciativa popular, tomando-se como
referência as eleições municipais de 2020: nelas, o vereador com o melhor
desempenho nas urnas teve 6.947 e o lanterninha dos 17 eleitos teve 2.269; a
soma de todos os votos dos 17 eleitos resulta 61.923, ou seja, esses foram os
eleitores que conseguiram pôr um vereador na Câmara.
Pois bem, agora apontado o
problema em torno da existência e ocupação de cargos públicos sem prévio
concurso, bem como a alternativa para sua resolução, sigamos ao sintoma, que
esse mal vem causando no campo da probidade e moralidade públicas (as Rachadinhas);
essa prática seria crime ou não?
Para alguns essa conduta seria crime
de peculato, pois que o agente político (presidente, deputado federal,
senador, governador, deputado estadual, prefeito e vereador) se apropriaria de
dinheiro de que tem a posse, mas que não lhe pertence, posto que é salário de
seu apadrinhado; para outros o crime seria de corrupção passiva, porque
o agente político solicita ou simplesmente recebe parte do salário do
apadrinhado, como forma de retribuir o favor feito; há também aqueles que
entendem que o crime seria de concussão, na hipótese de o agente
político exigir do apadrinhado parte de seu salário, ao invés de simplesmente lhe
solicitar ou receber.
Particularmente, entendo que essa
odiosa prática não pode ser enquadrada como peculato, porque o agente político
não tem a posse dos valores consigo, para deles se apropriar
(peculato-apropriação) ou mesmo desviá-lo em seu proveito (peculato-desvio); a
hipótese de corrupção passiva me parece cabível, quando há o acordo escuso
entre o agente político que nomeia e o servidor que é nomeado e, nessa
hipótese, o apadrinhado cometerá o crime de corrupção ativa, quando tiver
partido dele o oferecimento ou promessa da rachadinha, com o fim de
retribuir o favor ao padrinho; quanto ao crime de concussão, parece surreal
imaginar que existam agentes políticos que – com um tom de coerção – exijam parte
dos salários de seus apadrinhados (políticos de verdade [neste nosso país] preferem
negociar suas improbidades, geralmente não são dados à opressão; são mais
cavalheirescos no trato...).
E, para finalizar um problema de
outro tempo e local, mas que evoca Shakespeare (Something is rotten in the
state of Denmark), pergunto: seria válida uma investigação desse esquema
de rachadinha a partir de uma carta anônima?
Pois bem, diz o Supremo Tribunal
Federal que não!
Isso, exatamente porque o artigo
5º, inciso IV, da Constituição da República, ao assegurar a livre a
manifestação do pensamento, proíbe o anonimato ou manifestação anônima... Em
sua jurisprudência, nossa Suprema Corte conclui: os escritos anônimos não
podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata
instauração da persecutio criminis, eis que peças apócrifas não podem ser
incorporadas, formalmente, ao processo; e ainda mais: nada
impede, contudo, que o poder público provocado por delação anônima
(disque-denúncia, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar,
previamente, em averiguação sumária, "com prudência e discrição", a
possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça
com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem
a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da persecutio
criminis, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal
em relação às peças apócrifas; e por fim: o Ministério Público,
de outro lado, independentemente da prévia instauração de inquérito policial,
também pode formar a sua opinio delicti com apoio em outros elementos de
convicção que evidenciem a materialidade do fato delituoso e a existência de
indícios suficientes de sua autoria, desde que os dados informativos que dão
suporte à acusação penal não tenham, como único fundamento causal, documentos
ou escritos anônimos.
Seria então cabível a instauração
de inquérito policial (que é um procedimento formal de polícia judiciária) a
partir de uma carta anônima que denuncia um esquema de rachadinhas? Pareceu-nos
que a resposta do Supremo Tribunal Federal foi bem clara em sentido oposto...
E quando essa denúncia anônima
parte de um agente político, que coincidentemente acumula cargo importante de
chefia na própria polícia judiciária, a cena fica mais turva...
Na verdade, o mais adequado seria
o Ministério Público, de ofício, à vista de tudo o que é noticiado e jamais
exclusivamente a partir de denúncia anônima, mas quebrando sigilos fiscais e
bancários de suspeitos, apurar eventual infração político-administrativa a
partir da Lei nº 8.429/92: Art. 9º Constitui ato de improbidade
administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem
patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego
ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, e notadamente: I -
receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer
outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão,
percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou
indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das
atribuições do agente público.
Shakespeare estava errado, afinal
o Brasil já havia sido descoberto em 1.603; não é só na Dinamarca que Something
is Rotten.