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Azor Lopes da Silva Júnior

Advogado, professor universitário e jornalista


Rachadinha: Algo de podre não só no Reino da Dinamarca

Por: Azor Lopes da Silva Júnior
23/09/2021 às 19:54
Azor Lopes da Silva Júnior

William Shakespeare escreve em 1603 A Trágica História de Hamlet - Príncipe de Dinamarca, d’onde surge a fala Something is rotten in the state of Denmark (Algo está podre no Reino da Dinamarca), dita por Marcelo, em diálogo com seu colega de guarda militar (Horácio), enquanto o príncipe Hamlet seguia o fantasma de seu pai (o Rei Hamlet).

No Rio de Janeiro, Flávio Nantes Bolsonaro foi denunciado pelo Ministério Público por 1.803 condutas tidas por peculato, em concurso material com distintas acusações de lavagem de dinheiro e organização criminosa, pela chamada prática da Rachadinha; enquanto isso, aqui nas Terras de São José, 11 vereadores, 34 assessores legislativos e 1 secretário municipal (vereador licenciado) são investigados por prática idêntica a partir de uma denúncia anônima.

Antes de enfrentar a questão central, talvez fosse o caso de a sociedade brasileira – e porque não a sociedade rio-pretense também – refletirem o que explica a existência de agentes públicos não concursados na estrutura dos governos e poderes federais, estaduais e municipais...

O fundamento legal é simples: de um lado, a Constituição Federal determina a regra de que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, porém, logo adiante, flexibiliza essa regra com a ressalva à nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração... Grifamos a expressão declarado em lei, porque o legislador constituinte deixou que, essas exceções à regra de investidura em cargo público, ficassem a ser definidas pelo chamado legislador ordinário (não elaborador da norma constitucional).

É, nesse ponto, que a causa primária do problema se mostra não tão distante (nos governos federal e estadual), mas sim habita entre nós – nos nossos próprios municípios – quando seus vereadores e prefeitos criam leis, simplesmente para distribuir cargos capazes de acomodar seus correligionários políticos, candidatos com votação expressiva (porém não eleitos) e cabos eleitorais (captadores de votos).  

A exigência constitucional de concurso público,  concurso publico de provas ou de provas e títulos não é mera regra adotada arbitrariamente, mas parte de uma lógica de se universalizar republicanamente o acesso aos cargos públicos a quem queira ocupá-los, selecionando-se dentre eles os mais preparados, de acordo com a natureza e a complexidade do tal cargo ou emprego, e isto por meio de critérios objetivos; n’outras palavras, sem apadrinhamento.

A conclusão é óbvia: não fosse a existência de leis municipais, estaduais e federais criando os tais cargos de livre nomeação, não teríamos apadrinhamentos a custa de dinheiro público, acomodação não republicana de correligionários em cargos absolutamente dispensáveis à máquina pública e, por que não dizer, a conduta improba de se nomear uma pessoa em troca de parte de seu salário...

Como mudar isso? Uma forma é esperar que prefeitos e vereadores (também deputados federais, estaduais e senadores) revoguem cada uma das leis que criaram esses cargos; outra forma é a apresentação desses mesmos projetos nessas Casas Legislativas, na forma de Projeto de Lei de Iniciativa Popular.

A iniciativa popular de leis federais depende, segundo dispõe o artigo 61, § 2º, da Constituição Federal, assinatura de, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por 5 Estados, com não menos de 3% dos eleitores de cada um destes Estados; no Estado de São Paulo, o artigo 24, § 3º, 1, de sua Constituição Estadual exige 5% do eleitorado subscrevendo um projeto de lei de iniciativa popular.

Em nossa querida São José do Rio Preto, pelo que dispõe sua Lei Orgânica (Art. 39), um projeto de lei nesse sentido deve(ria) vir sob forma de moção articulada e subscrita por ao menos 5% do eleitorado, ou seja 16.561 de seus 331.215 eleitores (dados referentes ao mês de agosto de 2021 – Fonte: Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo); veja-se, então, como é difícil mobilizar a sociedade para convergirem 16.561 eleitores num projeto de lei de iniciativa popular, tomando-se como referência as eleições municipais de 2020: nelas, o vereador com o melhor desempenho nas urnas teve 6.947 e o lanterninha dos 17 eleitos teve 2.269; a soma de todos os votos dos 17 eleitos resulta 61.923, ou seja, esses foram os eleitores que conseguiram pôr um vereador na Câmara.

Pois bem, agora apontado o problema em torno da existência e ocupação de cargos públicos sem prévio concurso, bem como a alternativa para sua resolução, sigamos ao sintoma, que esse mal vem causando no campo da probidade e moralidade públicas (as Rachadinhas); essa prática seria crime ou não?

Para alguns essa conduta seria crime de peculato, pois que o agente político (presidente, deputado federal, senador, governador, deputado estadual, prefeito e vereador) se apropriaria de dinheiro de que tem a posse, mas que não lhe pertence, posto que é salário de seu apadrinhado; para outros o crime seria de corrupção passiva, porque o agente político solicita ou simplesmente recebe parte do salário do apadrinhado, como forma de retribuir o favor feito; há também aqueles que entendem que o crime seria de concussão, na hipótese de o agente político exigir do apadrinhado parte de seu salário, ao invés de simplesmente lhe solicitar ou receber.

Particularmente, entendo que essa odiosa prática não pode ser enquadrada como peculato, porque o agente político não tem a posse dos valores consigo, para deles se apropriar (peculato-apropriação) ou mesmo desviá-lo em seu proveito (peculato-desvio); a hipótese de corrupção passiva me parece cabível, quando há o acordo escuso entre o agente político que nomeia e o servidor que é nomeado e, nessa hipótese, o apadrinhado cometerá o crime de corrupção ativa, quando tiver partido dele o oferecimento ou promessa da rachadinha, com o fim de retribuir o favor ao padrinho; quanto ao crime de concussão, parece surreal imaginar que existam agentes políticos que – com um tom de coerção – exijam parte dos salários de seus apadrinhados (políticos de verdade [neste nosso país] preferem negociar suas improbidades, geralmente não são dados à opressão; são mais cavalheirescos no trato...).

E, para finalizar um problema de outro tempo e local, mas que evoca Shakespeare (Something is rotten in the state of Denmark), pergunto: seria válida uma investigação desse esquema de rachadinha a partir de uma carta anônima?

Pois bem, diz o Supremo Tribunal Federal que não!

Isso, exatamente porque o artigo 5º, inciso IV, da Constituição da República, ao assegurar a livre a manifestação do pensamento, proíbe o anonimato ou manifestação anônima... Em sua jurisprudência, nossa Suprema Corte conclui: os escritos anônimos não podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata instauração da persecutio criminis, eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo; e ainda mais: nada impede, contudo, que o poder público provocado por delação anônima (disque-denúncia, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, "com prudência e discrição", a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da persecutio criminis, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas; e por fim: o Ministério Público, de outro lado, independentemente da prévia instauração de inquérito policial, também pode formar a sua opinio delicti com apoio em outros elementos de convicção que evidenciem a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de sua autoria, desde que os dados informativos que dão suporte à acusação penal não tenham, como único fundamento causal, documentos ou escritos anônimos.

Seria então cabível a instauração de inquérito policial (que é um procedimento formal de polícia judiciária) a partir de uma carta anônima que denuncia um esquema de rachadinhas? Pareceu-nos que a resposta do Supremo Tribunal Federal foi bem clara em sentido oposto...

E quando essa denúncia anônima parte de um agente político, que coincidentemente acumula cargo importante de chefia na própria polícia judiciária, a cena fica mais turva...

Na verdade, o mais adequado seria o Ministério Público, de ofício, à vista de tudo o que é noticiado e jamais exclusivamente a partir de denúncia anônima, mas quebrando sigilos fiscais e bancários de suspeitos, apurar eventual infração político-administrativa a partir da Lei nº 8.429/92: Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, e notadamente: I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público.

Shakespeare estava errado, afinal o Brasil já havia sido descoberto em 1.603; não é só na Dinamarca que Something is Rotten.






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