O ser mulher foi construído culturalmente como um outro do que é o ser homem, argumenta Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, obra dedicada à compreensão das origens da exploração da mulher pelo patriarcado. Sendo o outro o que é oposto (o que separa, divide e diferencia), e determinado por um mundo nomeado por homens e para homens, a mulher tornou-se o resto, o errado
Prossegue: a posse da propriedade privada da terra
seria o marco dessa supremacia. Quando os seres humanos deixam de ser
coletores, modo em que o uso da terra é coletivo e a geração de outros seres
humanos não é necessária para a sustentação da economia; quando há a
apropriação da terra para a produção agrícola, em que passou-se a existir um
dono, estendeu-se esse domínio aos filhos e às fêmeas, como processo necessário
para a sustentação de um patrimônio. A partir de então seria fundamental alguém
para cuidar da casa, e mão-de-obra para os campos. Ter filhos, portanto,
tornara-se prudente, era importante criar herdeiros para as propriedades.
Nesse sentido, na medida em que a ideia de
propriedade privada foi criada, esse conceito foi também guiado a tudo o mais
que circundava o macho. Quando a força física se torna importante na
administração do trabalho e no controle das posses, as mulheres também foram
dominadas.
É assim que a mulher é escravizada. Tornou-se o
segundo sexo. E o segundo só é depois de um primeiro. É o que é deixado para
traz. É o outro de uma visão binária de mundo, portanto é último. É o que não é
visto. É o que não é percebido. É o que não é.
Acreditava-se que essa opressão terminaria quando,
com as revoluções industriais, a força para o trabalho já não seria mais tão
fundamental, e assim, se criaria condições iguais. No entanto, não foi isso o
que aconteceu, escreve a filósofa. O que é notável, com o advento do
Capitalismo, foi a elaboração de novas formas de exploração criadas e apensadas
a de gênero.
A obra de Simone de Beauvoir, publicada em 1949,
foi considerada de extrema importância para se pensar a condição da mulher, e
um escândalo por escancarar a lógica do sistema patriarcal, sendo proibida de
ser traduzida em muitos países. O fato é que a palavra da mulher continua
diabólica e as bruxas ainda são más. O que faz concluir que há uma resistência
persistente a tudo o que é próprio da mulher e haverá sempre uma limitação à
liberdade feminina enquanto a cultura ainda for dominada apenas por homens. E
não esperemos que sejam abertas as portas dessa revolução.
Ingrid Zanata Riguetto é doutora em Teoria Literária pela Universidade
Estadual Paulista, escritora, historiadora, professora e participante do
coletivo Mulheres na Política