Em 16/03, circulou nas redes sociais um vídeo mostrando o proprietário de um pequeno comércio da cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, sendo serenamente abordado por policiais militares que o convidavam a entrar numa das 5 viaturas (a de um tenente), para ser conduzido à delegacia de polícia
Acusação; de que teria violado as restrições impostas ao comércio pelas autoridades municipais; não houve truculência por parte dos policiais e tampouco resistência ou descompostura por parte do cidadão; cenas bem diferentes da violência havida em 13 de abril de 2020, quando uma mulher foi algemada e presa por Guardas Municipais, ironicamente na "Praça dos Advogados”, na vizinha Araraquara.
Pois bem (permitam-me um breve testemunho), eu ingressei na Academia de Polícia Militar do Barro Branco no início do ano de 1982, até me "aposentar” em novembro de 2014, quando ocupava o posto de Coronel, no cargo de Comandante da Região de São José do Rio Preto, mas já em 1985 eu iniciava o curso de Direito na tradicional FADIR, o que me habilitou a ser professor dos cursos de formação de policiais, Comandantes e, a partir de 1999 até hoje, do curso de Direito do Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP); mas por que digo isso? Simples, jamais ensinei aos meus alunos policiais ou aos futuros advogados, juízes, promotores, defensores públicos, procuradores do estado e delegados de polícia, que alguém pudesse ser "conduzido” ou "custodiado” (termos próprios da verborragia jurídica), sem que ao menos o policial condutor apontasse qual o crime que o conduzido teria cometido...
E o que se vê nas cenas da "Califórnia Brasileira” (Ribeirão Preto)? Um procedimento policial abusivo, travestido com fino trato, numa festa de confusões jurídicas, por Deus bem resolvidas, por meio da caneta de um juiz preparado e justo.
Mas por que digo isso? Simples: "Infração de medida sanitária preventiva” (Art. 268 do Código Penal) e "Desobediência” (Art. 330 do Código Penal) seriam os supostos crimes praticados por insurgentes às restrições sanitárias. Mas de onde vem essa conclusão? Simples também: vem da Portaria Interministerial nº 05, de 17 de março de 2020, subscrita pelos então ministros da Saúde (Luiz Henrique Mandetta) e da Justiça e Segurança Pública (Sérgio Moro); ora, Mandetta é médico e deve entender de medidas sanitárias, enquanto Sérgio Moro era juiz federal e deve entender de Direito...
Mas o que isso tem a ver com o caso da prisão do comerciante em Ribeirão Preto? Simples também; veja: esses dois crimes – partindo da mera hipótese que tivessem ocorrido – são infrações penais de menor potencial ofensivo e, por essa razão, a Lei 9099, de 1995, diz textualmente que nesses casos "não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança” (artigo 69, parágrafo único).
Mas veja o que se extraí da decisão do Juiz de Direito de Ribeirão Preto, Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, dentro do Processo nº 1500681-23.2021.8.26.0530: "De acordo com a capitulação jurídica atribuída pela autoridade policial, a conduta do preso, consistente em manter seu estabelecimento comercial aberto, em desobediência à "determinação do Governo Estadual”, que ordenou o fechamento do comércio na chamada "Fase Emergencial” da pandemia de Covid-19, e ter incitado outros comerciantes a fazerem o mesmo, teria caracterizado os crimes definidos nos artigos 268, 286 e 330 do Código Penal.”; ora, os artigos 268 e 330 já vimos acima – e são de menor potencial ofensivo – mas veja que o delegado de polícia ainda enquadrou a conduta do comerciante no artigo 286 do Código Penal ("Incitação ao Crime”), cuja pena é de até 6 meses de detenção, portanto também de menor potencial ofensivo...
Mais surpreendente ainda, para que se perceba que não é só da polícia que partem abusos, é que o promotor de justiça pediu que aquela ilegal prisão em flagrante, feita pelos policiais miliares, adiante convalidada e autuada pelo delegado de polícia, fosse convertida em prisão preventiva; relata o juiz: "... o Ministério Público pugnou pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, em suma, por ter o indiciado reiterado o descumprimento de determinações sanitárias e incitado outros comerciantes a fazerem o mesmo, em desrespeito aos decretos de calamidade pública.”
Ora, maior absurdo não há – se outros não houvesse no caso – que dizer ter o comerciante incitado a comunidade à prática do crime de "Infração de medida sanitária preventiva”, quando lembramos que, há uma década, o Supremo Tribunal Federal até mesmo já permitiu a "Marcha da Maconha”, quando do julgamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 187), pasmem: ajuizada pela Procuradora-Geral da República, em exercício na ocasião (2011), a doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira... Veja então que ora o ministério público defende a prisão preventiva de um comerciante e ora defende a liberdade de opinião mesmo em temas tão controversos...
Por sorte, Ribeirão Preto, a prisão foi relaxada porque reconhecida a ilegalidade e, pelas mãos do Juiz de Direito Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, surge um sopro de esperança de que o Direito brasileiro e os direitos fundamentais dos brasileiros ainda têm salvação, garantia, e que nossa Constituição não é, como dizia Ferdinand Lassale, em 16 de abril de 1862, na cidade de Berlin: uma "folha de papel”; permitam-me encerrar com o trocadilho: não estamos na Berlin-da.