Este site usa cookies para garantir que você obtenha a melhor experiência.



Azor Lopes da Silva Júnior

Advogado, professor universitário e jornalista


A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLITIZAÇÃO DA JURISDIÇÃO

Por: Azor Lopes da Silva Júnior
17/08/2021 às 10:00
Azor Lopes da Silva Júnior

O Brasil, no campo do conhecimento jurídico, tem proporcionado que a imprensa vá para além dos fatos jornalísticos e se especializado cada vez mais no Direito, comunicando à sociedade conteúdos antes reservados à comunidade jurídica.

Quando digo isso não o faço – de certa forma – a título elogioso, mas num tom crítico à judicialização de questões que deveriam ser objeto de reflexões, debates e decisões nas arenas políticas; bem verdade que, como efeito colateral dessa tendência à judicialização exagerada, brota também a disseminação de discussões provocadas pela imprensa sobre cada desses casos, o que qualifica a informação jornalística de bom conteúdo e estimula a verdadeira cidadania.

Se de uma banda o Poder Judiciário bem se explica, justificando que não é ele quem provoca essa indesejável judicialização de questões de natureza política, de outro lado nós – que vivemos nas comunidades jurídica e acadêmica – notamos que num passado menos recente os magistrados seguiam a máxima: Não é dado ao Judiciário se imiscuir no mérito administrativo.  

Na obra The Judicialization of Politics in Latin America, publicada por de Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell em Nova York no ano de 2006, o capítulo capítulo intitulado Constitutionalism, the expansion of Justice and the Judicialization of Politics in Brazil, coube ao brasileiro Rogério Bastos Arantes, que apontou 4 causas para o fenômeno dessa judicialização: (1) a extensão dos direitos previstos na Constituição de 1988; (2) a pressão de grupos de interesse na judicialização; (3) o papel dos grupos antagônicos no cenário político (grupos da coalisão e grupos da oposição) e; (4) o modelo constitucional, que atribuiria ao Poder Judiciário a tutela de interesses coletivos e difusos. Nas palavras do autor: First, political democracy was established in the 1980s followed by the approval of a new constitution in 1988 that set out an extensive charter of rights. Second, an increasingly greater number of interest groups within society are demanding judicial solutions to collective conflicts. Third, the political system is characterized by fragile and even minority coalitions supporting the government of the day, while the opposition uses the judiciary to fight government policies. Lastly, the constitutional model delegates to the judiciary and to the Ministerio Publico (Public Ministry) the task of protecting both individual rights and interests, as well as collective and social rights.

De fato, a Constituição de 1988 é o que chamamos, dentro da comunidade jurídica, de uma constituição analítica, não tão somente pela extensão de seu texto, mas porque nele foram inseridas questões que chamamos de materialmente constitucionais e outras formalmente (ou não materialmente) constitucionais; as materialmente constitucionais são aquelas que simplesmente estabelecem os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos políticos, de cidadania e nacionalidade, além de alguns direitos sociais, e a estrutura do Estado, destacando-se sua forma (republicana), sistema (presidencialista), regime (democrático) e separação entre os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Constituições analíticas, como a nossa, acabam também trazendo ao seu texto temas que não são de natureza constitucional e, por essa razão, são chamadas normas formalmente constitucionais (como é o caso da jornada de trabalho semanal de 44 horas, seguro desemprego e outros tantos previstos no artigo 7º).

Ao contrário, nas Sintéticas, tal a Constituição dos Estados Unidos da América, somente questões materialmente constitucionais compõe seu texto, ainda que esse texto não seja necessariamente enxuto ou resumido; a Constituição Americana, traduzida para a língua portuguesa, tem 7.099 palavras (isso sem contar suas 27 Emendas) e, portanto, não é tão resumida...

As segunda e terceira questões apontadas por Rogério Bastos Arantes (grupos de pressão social e grupos políticos antagônicos) são evidentes na realidade política brasileira, porém esse fenômeno acontece em qualquer nação democrática – inclusive nos Estados Unidos – sem que lá se perceba e se tente justificar ou explicar a judicialização que aqui acontece; semelhantemente, o quarto fenômeno que o autor aponta (o papel constitucional atribuído pela Constituição ao Poder Judiciário) não é diferente noutros países, tampouco naquela nação.

O que vem acontecendo no Brasil nos tempos mais recentes – especialmente no Supremo Tribunal Federal – é o rompimento com a tradição da própria Corte Constitucional de não se imiscuir para além do Direito na direção ao campo das políticas públicas, de responsabilidade exclusiva do Poder Executivo, e da ação política, própria das Casas do Congresso Nacional; o estado de coisas que aqui ocorre não se deve portanto ao modelo constitucional e, mesmo diante das pressões de grupos de pressão social ou grupos políticos antagônicos (fenômeno que acontece em qualquer democracia, como o dissemos), o que deveria o Poder Judiciário revisitar sua mais antiga tradição e, em tempos modernos, voltar a se autoproclamar incompetente para julgar essas outras questões que não lhe cabem, mas aos outros poderes, a fim de se prestigiar o princípio constitucional da separação dos poderes: Artigo 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

O que vem sendo adotado pelo Supremo Tribunal Federal para invadir a esfera de atribuições dos outros poderes é um abuso àquilo que os linguistas chamam intertextualidade, paratexto, metatextualidade, hipertextualidade e arquitextualidade; é o que Umberto Eco critica e chama de superinterpretação, algo que pode (mas não deveria) se derivar do contraste entre a intentio auctoris, a intentio operis e a intentio lectoris, quando se permite ao leitor alargar sua margem de interpretação de um texto alheio, pondo de lado a intenção pretendida pelo autor, quando comunicou um algo num seu texto. A esse exagero hermenêutico, Eco chama interpretação paranoica e interpretação suspeita; paranoica é aquela em que o leitor elucubra em busca dos motivos misteriosos do autor, que vê por baixo de meu exemplo um segredo, enquanto interpretação suspeita seria aquela de que padeceria a semiótica hermética, na medida em que desconsidera o critério da economia e, no seu lugar, supervaloriza as pistas deixadas no texto criando uma falsa transitividade ou falácia hermética post hoc ergo ante hoc (o que vem depois causa o que vem antes).

Umberto Eco exemplifica a tal falácia hermética: um médico diagnosticar a soda, adicionada às distintas espécies de bebidas alcoólicas, como sendo o elemento causador da cirrose hepática em seus pacientes; tudo porque esse sofisma partira da premissa que ela (a soda) teria sido o elemento comum em todos os casos de cirrose, sem que se perceba que o elemento comum e verdadeiramente culpado – por outra e óbvia causa – é o tão somente o álcool, com ou sem a mistura da inocente soda.

Esse foi o objeto de nossa pesquisa em pós-doutoramento, pela nossa Unesp (campus rio-pretense), em que defendíamos a presunção do estado de inocência e criticávamos a chamada execução antecipada de pena adotada ao arrepio da norma constitucional (Artigo 5º. LVII. ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória) sustentando que, se a norma jurídica (lei ou constituição) não se presta mais ao fim para a que foi originalmente concebida e promulgada – e por isso mais mal que bem ela cause na gestão das coisas e serviços do Poder Judiciário – ou ainda, em se considerando que a barreira, para a adoção de políticas públicas mais sérias na prestação da jurisdição, decorra de um aparato normativo fraco e ineficiente, que se discuta a reformulação dessas regras normativas numa arena dotada de legitimidade (detentora de mandato popular), de composição ampla e plural (594 parlamentares de todos os extratos sociais) e de renovação periódica (quadrienal), mas não no Judiciário.

Em reforço a essa tese, vale lembrar que somente quando a lei for omissa, caberá ao juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito e, somente em sua aplicação, ele buscará atender aos fins sociais a que essa lei se dirige e às exigências do bem comum (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).

Enquanto o Poder Judiciário – que é o único dos três poderes não legitimado pela soberania popular – exorbitar em seu papel de interpretação de normas constitucionais, permitindo-se agir pela tal malfadada superinterpretação (Umberto Eco) de normas abstratas da nossa Constituição e ao contrário de nossa tradição, o que veremos é não só a judicialização da política e das políticas públicas, como também a politização da jurisdição (o que é dos males o maior).






Anunciar no Portal DLNews

Seu contato é muito importante para nós! Assim que recebemos seus dados cadastrais entraremos em contato o mais rápido possível!