‘Sonho meu, sonho meu, Vai buscar quem mora longe, sonho meu! Vai buscar essa saudade, sonho meu, E a sua liberdade, sonho meu!’
O ano era 1978... vivíamos a época da ditadura. Nos
chegavam notícias de pessoas presas, torturadas, desaparecidas, além de exilados
políticos. Foi um período sombrio, onde suportamos
a travessia dessa página infeliz da nossa história com a poesia , a potência de
uma voz melodiosa que surgia nos embalando e inspirando a sonhar, acreditar em
liberdade e igualdade. A voz de uma mulher negra, neta de escravos, Yvonne Lara
da Costa (1922-2018) marcava os momentos da nossa história.
Após se aposentar aos 56 anos de idade, ela teve
destaque no mundo do samba como compositora, tocando cavaquinho, cantando e
encantando com sua dança. Foi consagrada
"Dona Ivone Lara, a Rainha do Samba e Grande Dama do Samba".
À frente de seu tempo, junto com sua família,
frequentava as rodas de samba em ambiente quase exclusivamente masculino. Não
podia se mostrar compositora pelo simples fato de ser mulher. Em 1965, inovou o
universo machista do samba, sendo a primeira mulher a assinar um samba enredo
oficial e a fazer parte da ala de compositores da escola Império Serrano.
O que poucos sabem é
que ela foi também enfermeira, assistente social e terapeuta ocupacional.
Trabalhou junto com a psiquiatra Nise da Silveira, ambas precursoras do
movimento antimanicomial. Concursada pelo Ministério da Saúde foi trabalhar no
Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro/RJ, onde eram internadas
pessoas com problemas mentais e comuns os tratamentos agressivos com
eletrochoque e lobotomia. Nessa época as pessoas eram institucionalizadas nos
manicômios e era comum serem abandonadas pela família. Dona Ivone se deslocava
para os municípios do RJ e estados vizinhos, localizando parentes dos internos
para apresentar uma visão de inclusão, buscando a desinstitucionalização;
distintamente da maioria dos diagnósticos médicos, que desacreditavam a
condição mental dessas pessoas.
Sua atuação, por anos
invisibilizada, foi fundamental para se pensar o cuidado interdisciplinar em
saúde mental. Aproveitou seus conhecimentos como instrumentista, compositora e
participante das atividades musicais junto com familiares e amigos, aplicou-as
em seu trabalho.
Em 1946, sugeriu a
criação de uma sala de música, e foi assim que surgiu o Serviço de Terapia
Ocupacional, onde implantou a Musicoterapia, cuja técnica promove a
comunicação, criação e melhora do quadro clínico, levando a uma diminuição no
uso de medicamentos e tempo de internação.
Tudo isso, quase 20
anos antes de Foucault escrever ”A história da Loucura” e da organização do
movimento antimanicomial. Quase 60 anos antes da promulgação da Lei 10.216, que
redirecionou o modelo de Saúde Mental no Brasil. Essa nova visão, humanizada do
cuidado de saúde mental, norteou a Reforma Psiquiatra Brasileira, e a
organização do cuidado da Rede de Atenção Psicossocial do SUS, principalmente
na atuação dos serviços dos CAPS – Centro de Atenção Psicossocial.
Seu
legado e trajetória de vida nos ilumina! Só nos resta reverência e gratidão!
"Abençoada
pela luz da poesia
Eu
vou cantando para espantar a dor”
Maria Elenice Vicentini, enfermeira sanitarista em
defesa do SUS - Sistema Único de Saúde, membra do Coletivo Mulheres na
Política.