Uma coisa que sempre ocasionou sofrimento em minha vida foi imaginar o que minha Mãe e a Mãe de minha Mãe e assim por diante sofreram em função do patriarcado político-religioso.
Lembro-me da minha avó contar que sua Mãe foi uma
indígena pega à laço por meu bisavô branco, uma cena que, para mim, é muito
dolorosa por imaginar o sofrimento da Mulher, que deixa de ser Livre para ser
estuprada repedidas vezes por um "ser” superior. Minha Mãe, na juventude,
sempre teve muita vitalidade, força, entusiasmo e esperança, e confesso que era
uma Mulher ousada, e se tivesse a oportunidade, com certeza seria uma feminista
da época (idos dos anos 60 do século XX). Ela se casou tarde para a época, mas
da forma mais romântica que um casal cis-hétero-normativo-branco poderia
fazê-lo, com direito a tudo que uma Mulher doutrinada pela ideologia
patriarcal-político-religiosa sonha: véu, grinalda, amor além dos limites,
filho e na sequência, traição e desespero. Muito decidida, se separou na
sequência da traição sofrida pelo seu grande amor e voltou a morar com a minha
avó com toda a recepção que se daria à época a uma bastarda ou "Mulher da
vida”. Separação (na época desquite) era encarada assim. Foi condenada a ser
uma pária dentro e fora da família. Se sentindo totalmente desprotegida e
vítima de uma sociedade primitiva, decidiu "encontrar” marido e para isso tinha
toda uma assessoria familiar para "desencalhá-la” juntamente com a criança. Foi
nesse momento que conheceu meu pai, para o qual, primeiramente toda família, e
depois ela, decidiram que era o que dava para arranjar.
Continuou vivendo toda a misoginia promovida pela
ideologia patriarcal político-religiosa, comeu o pão que o
homem-cis-hétero-normativo-branco amassou, sofreu, deu à luz ao que seria uma
esperança, mas a pressão misógina promovida pelo meu pai, a "família”, e toda a
sociedade foi muito forte, e na sequência quando grávida do meu terceiro irmão,
sofreu tanto, que o bebê nasceu prematuro e naquele tempo (anos 60 do século
XX) sem chance de vida. Isso a destruiu. A Mulher que antes do seu primeiro
casamento era cheia de vitalidade, força, entusiasmo e esperança deu lugar à
uma Mulher amarga, desconfiada, e autodestrutiva. E lá veio eu, rapa do tacho,
mais uma tentativa de mudar o relacionamento, nasci numa época próspera, e
tenho certeza que minha Mãe sentiu naquele momento um pouco de esperança,
talvez mudanças para melhor. Houve bonança, mas durou pouco. Na sequência a
"família” a "enquadrou” novamente e daí a autodestruição voltou com tudo.
Viveu até seus 81 anos sempre lutando, mas sempre
perdendo, pois o Brasil e o mundo não mudaram! "Mulher tem seu papel de
escrava, de alvo de opressão, e deve cumpri-lo!” Ela cumpriu. "Se quiser bater
em alguém para afogar suas mágoas, bata numa Mulher!” Bateram muito nela. Choro
muito por pensar em tudo que ela passou. E sei que, o que minha avó passou foi
pior, e sua ascendência pior e pior. Hoje, eu sofro com a mesma intensidade,
com a mesma ideologia, com a mesma sociedade, com a mesma família, afinal,
somos Mulheres! Sou o espelho da minha Mãe! O que desejo e luto para isso é que
nossas futuras Mulheres possam, UM DIA, desfrutar a Liberdade. Ainda não chegou
nossa vez, mas há de chegar!
Marcela Marques é Trans Mulher Lésbica Branca, com
todos os privilégios que possam vir disso. Formada em química, pós-graduada,
professora da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” e
coordenadora do Projeto VIdAS (Valorizando Identidades e Acolhendo
Sexualidades).