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O médico e professor da Famerp Cacau Lopes
Foto por: Arquivo pessoal
O médico e professor da Famerp Cacau Lopes

Opinião: A Saúde é um negócio?

Por: Cacau Lopes
18/09/2021 às 15:54
Opinião

"A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio. O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa.” (Código de Ética Médica)


A sociedade brasileira, principalmente os profissionais de saúde e os usuários dos serviços, precisa urgentemente decidir se a saúde é um bem público, um direito de todos, independentemente do poder aquisitivo de cada um, ou um bem de mercado, como outra qualquer mercadoria. De um modo simplificado, podemos dividir os Sistemas de Saúde no mundo em três modelos: livre-mercado, público e estatal. A maioria dos países da Europa, o Canadá, entre outros, optou por construírem Sistemas Públicos, onde mais de 80% dos recursos vem do Estado, através de parcelas do orçamento ou de impostos próprios. Neste caso, a medicina privada atua em caráter complementar, oferecendo procedimentos não cobertos. Estes países investem, em média, 2.500 a 3.000 dólares habitante/ano em saúde. 

Os EUA é o exemplo mais acabado de um Sistema de Livre-Mercado. Apesar do Obama-Care, 27 milhões de americanos não têm nenhuma cobertura médica ou vive da assistência de instituições filantrópicas. A pandemia do COVID-19 escancarou a indigência de milhões de americanos, principalmente aqueles que vivem no sul do país, majoritariamente negros e imigrantes de outros países das Américas.  Cuba é o principal paradigma de um Sistema de Saúde Estatal. Israel tem um sistema bastante interessante, onde o financiamento é público e quatro agências privadas prestam serviços a partir de um controle financeiro e de qualidade gerenciado pelo Estado. E o Brasil?

Para variar, o nosso Sistema de Saúde é sui generis, um verdadeiro Frankenstein. A Constituição Federal de 1988 instituiu no seu artigo 196 que "a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. Portanto, ela deve ter um caráter público. Entretanto, o artigo 199 estabelece, ao mesmo tempo, "que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Até aí tudo bem, desde que o direito de todos à saúde fosse garantido de forma universal e equânime. 

O problema foi que essa forma de se organizar o acesso à assistência criou três sistemas paralelos, com lógicas totalmente diversas, onde o SUS, que atende 75% da população, subsidia os outros 25% da medicina de convênio ou do desembolso direto, agravando ainda mais seu desfinanciamento. Mais de 90% dos transplantes, das Terapias Renais Substitutivas são feitas pelo SUS. 80% das remoções em nosso país é realizada pelo SAMU, sem falar na busca de medicamentos de alto custo e outros pela maioria das pessoas que desprezam o SUS nos seus comentários. O que temos no Brasil é uma vergonhosa iniquidade, na qual quem tem convênio pula para o SUS a hora que quiser e quem tem SUS só vai para o convênio se comprar um plano. Há hospitais, inclusive, que jogam com estas "duas portas” a partir do seu exclusivo interesse econômico. 

O que está acontecendo em Rio Preto no mercado mais do que lucrativo da doença é um exemplo claro dos caminhos que a saúde está tomando e que impactará, de forma bastante cruel, o processo de trabalho médico e os cuidados da população. A compra do Austa Clínica e do IMC por um "grupo de investidores”, que está prometendo 60 milhões de investimentos no setor, a aquisição pela HAPVIDA da carteira da Santa Casa, que já tinha sido adquirida pelo Grupo São Francisco e, agora, a incorporação por este mesmo grupo do HB-Saúde, segundo consta por 450 milhões, deixa claro, ao meu ver, o que nos espera logo mais à frente: mais precarização dos trabalhadores da saúde, principalmente médicos e médicas, que passarão a ser meros prescritores de "pacotes tecnológicos” impostos por protocolos pautados muito mais na economia do que na qualidade clínica, tendo seus honorários reduzidos sensivelmente. 

A compra e venda de operadoras e de hospitais é um processo que se iniciou há tempos com a aquisição da AMIL pelo Grupo Americano UnitedHealth, pela cifra de R$ 9,8 bilhões, e que se intensificou nos últimos anos. Internacionalização das operadoras, concentração da assistência na mão de poucas e a verticalização da assistência, resultando que os hospitais, os laboratórios e as clínicas fiquem nas mãos dos investidores, entre outras tendência do mercado privado da saúde, vêm fazendo com que a maioria dos profissionais de saúde se transforme em meros empregados destes grupos, em contratados como pessoas jurídicas, abrindo mão daquilo que é o mais fundamental em nossa profissão: a autonomia responsável, clínica e eticamente sustentada.

Nos últimos anos, as Cooperativas Médicas vêm perdendo espaço para a Medicina de Grupo. Em 2011, 37% dos consumidores de convênio médico estava vinculado às UNIMEDs. Em junho de 2021, segundo dados da ANSS, 40,2% das carteiras da saúde complementar já estava nas mãos da Medicina de Grupo e 36,6% com as Cooperativas. 68% dos planos são coletivos, altamente dependentes do desempenho da economia do país. Este cenário impõe um acirramento da competição entre as grandes operadoras. Não tenho dúvida que os médicos, médicas e usuários pagarão esta conta com mais precarização do trabalho e da assistência. 

Sempre vi nas cooperativas um dos caminhos para se enfrentar este movimento de crescimento de um mercado perverso na saúde. Mas para isto, torna-se necessário que as cooperativas, notadamente as UNIMEDs, repensem seu modelo de gestão, altamente concentrado em alguns grupos médicos, agreguem o valor da qualidade, da eficiência do cuidado nas suas formas de remunerar seus profissionais, aprofundem modelos de atenção integrados, multiprofissionais e de vínculos humanizados com seus usuários, envolvendo os cooperados de forma mais permanente nas decisões gerenciais. 

Os cooperados, por sua vez, têm que parar de olhar a Cooperativa como um "caixa eletrônico”, onde vão sacar seus honorários, para se co-responsabilizarem com os resultados, agregando valores da excelência clínica, da ética e do trabalho em equipe nas suas condutas profissionais. Cabe a nós escolhermos: ou a lógica daqueles que priorizam o lucro a todo custo, ou a lógica, que espero que seja a da maioria de nós, de exigir dignidade à nossa profissão e o direito à saúde da população.

Cacau Lopes é professor de Saúde Pública da FAMERP, doutor em saúde coletiva pela UNICAMP.







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