SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta. Foi o que Sueli Carneiro disse à revista Caros Amigos em fevereiro de 2000, ...
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta. Foi o que Sueli Carneiro disse à revista Caros Amigos em fevereiro de 2000, ao comentar a disputa política entre os então candidatos à prefeitura paulistana.
A frase virou emblema, ressoou por décadas e acabou no título de Continuo Preta, a biografia em que a jornalista Bianca Santana registra mais de 40 anos de ativismo político e intelectual de uma das maiores figuras do feminismo negro brasileiro.
Apesar de reclamar que a citação foi usada e abusada mais do que deveria, Carneiro diz que o diagnóstico ainda segue de pé.
Nós, negros, temos pouco a dizer a respeito da direita, porque seu projeto sempre foi muito claro em relação a nós. Subalternização ou extermínio. Nosso lugar era limpar privada dos brancos, afirma. Quem nos prometeu o reino dos céus foi a esquerda. Estamos tentando obrigar a esquerda a entregar.
Na mesma manhã de quinta em que biógrafa e biografada davam esta entrevista, acontecia a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, a chacina na favela do Jacarezinho. Os dados mais recentes, vale lembrar, mostram que negros são vítimas de 74% das mortes violentas no Brasil, um cenário que as entrevistadas veem agravado pelo governo Bolsonaro.
Quando começou o processo de desconstrução de direitos que esse governo vem promovendo, eu senti o baque, mas imediatamente pensei que pela maior parte da nossa história nós estivemos sem política pública. Sempre estivemos abandonados, desde o 14 de maio de 1888, diz Carneiro.
Esse hiato que nos permitiu algumas conquistas é um ponto fora da curva da nossa história secular de exclusão e abandono. É nisso que temos que confiar. Em todas as estratégias que há 500 anos a gente desenvolve para estar aqui, apesar de tudo. Para continuar aqui, apesar de tudo.
Tanto Santana quanto Carneiro concordam ser prioridade se posicionar contra o atual presidente, que a biografada define como uma aberração política que o movimento negro poderia ter previsto.
Carneiro, fundadora do Geledés, organização que defende os direitos das mulheres negras, afirma que desde a Constituição de 1988 houve sucessivos governos que criaram uma sensação de que enfim o país havia entrado num círculo virtuoso, em que o enfrentamento de desigualdades históricas tinha se iniciado.
Houve descuido, eu acho, da minha geração. A gente se empolgou, mesmo. Era impossível acreditar que um país tão violento, com história tão brutal, pudesse ser eternamente assim. A tentação era acreditar que, enfim, nós chegávamos a um momento em que as coisas se articulavam na direção da redenção.
E deixamos de travar o combate essencial, que era o ideológico, afirma Carneiro. A gente se ocupou por um longo período de desenhar e implementar políticas públicas e esqueceu como as ideologias conservadoras também estavam prosperando. Não fomos suficientemente atentos.
A luta nos anos depois da redemocratização, diz ela, foi contra o mito da democracia racial. E sua geração sabia que, quando tirasse essa capa, uma dimensão perversa iria emergir. Mas acho que a gente nunca está preparado para a perversidade que a violência racial pode alcançar.
Uma das medidas criticadas do governo foi o cancelamento do Censo deste ano, uma decisão que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, determinou que fosse revertida.
Segundo Santana, a decisão política de não ter um Censo explicita o que esse governo quer ocultar e manipular. Os nossos dados são gravíssimos, mas não ter dados tira a possibilidade de enfrentar qualquer questão.
Carneiro tem no currículo uma publicação seminal da década de 1980 em que, sozinha e munida de calculadora, tabulou os dados sobre a situação socioeconômica das mulheres negras, numa época quando esse recorte não era realizado.
As duas lembram, em coro, a campanha Não Deixe Sua Cor Passar em Branco, que afirmava a importância da autodeclaração racial das pessoas negras nos anos 1990, fundamental para conhecer as especificidades da sociedade brasileira.
Esse avanço sobre o Censo é absolutamente coerente, acrescenta Carneiro. É consistente com um tipo de governo que tem a violência do Estado contra populações que considera descartáveis e indesejáveis. Suprimir o Censo é negar o acesso às consequências dessa política.
É palpável na entrevista a sensação de uma troca de passes entre gerações, evidenciada pelo gesto de espalmar a mão para cima que Carneiro, de 70 anos, e Santana, de 37, faziam uma à outra, estimulando a tomar a palavra.
A autora de Continuo Preta ganhou notoriedade na luta antirracista do país depois de publicar Quando Me Descobri Negra, há seis anos. O livro, que traz a trajetória de seu reconhecimento como uma mulher negra, é um marco na vida da jornalista.
Depois da publicação, ela passou a ler textos de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro. Quando li O Poder Feminino no Culto aos Orixás, que a Sueli coescreveu, foi o momento decisivo em que comecei a fazer parte do movimento negro.
Anos depois, a biógrafa ouviu a ativista por mais de 160 horas para construir Continuo Preta, dando sequência a uma trajetória que tem ampliado o reconhecimento público de Carneiro.
Rosane Borges biografou a ativista dentro da coleção "Retratos do Brasil Negro" e Djamila Ribeiro criou um selo com o nome da intelectual, lançado há três anos com a coletânea Escritos de uma Vida, reunindo os principais textos de Carneiro.
Um ativismo antirracista e feminista de tantas décadas desembocar no Brasil de Bolsonaro pode ser lido como o final amargo de uma longa trajetória. Não é essa a narrativa de Sueli Carneiro.
Santana lembra que o ex-marido da ativista, Maurice, que é astrólogo, comparou a biografada ao topo de uma montanha. Seu mapa astral, segundo ele, revela uma solidez que é capaz de observar coisas a uma distância que poucas pessoas conseguem enxergar.