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Apoio a usina na Bolívia aproximou novo chanceler e Andrade Gutierrez no auge da Lava Jato

Por: FOLHAPRESS - RICARDO BALTHAZAR
08/04/2021 às 05:00
Brasil e Mundo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um projeto com o qual as empreiteiras brasileiras sonham há duas décadas levou o novo ministro das Relações Exteriores, Carlos Albe...


SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um projeto com o qual as empreiteiras brasileiras sonham há duas décadas levou o novo ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França, a se afastar do Itamaraty para trabalhar numa das maiores empresas do ramo quando ela estava prestes a ser atingida pela Operação Lava Jato.
França se licenciou do serviço público em março de 2015 para se juntar ao escritório da construtora mineira Andrade Gutierrez em Brasília e ficou na empresa até março de 2017, quando ela resolveu encerrar as atividades do departamento em que o diplomata atuava e ele retornou ao Itamaraty.
O chanceler sempre tratou o período com discrição no seu currículo, descrevendo-o apenas como uma "licença para trato de assuntos particulares", e só passou a fazer referência à Andrade Gutierrez após sua nomeação como ministro. O Itamaraty não respondeu a um pedido de entrevista sobre o tema.
Na época em que o diplomata foi contratado, a Lava Jato tinha aberto um inquérito sobre a participação da Andrade Gutierrez no esquema de corrupção descoberto na Petrobras, mas ainda não havia evidências contra ela, e nenhum de seus executivos tinha sido alvo de buscas ou mandados de prisão.
A construtora queria expandir seus negócios no exterior e estava à procura de profissionais com experiência na América Latina. Embora tivesse contratos importantes na Venezuela e na República Dominicana, sua presença na região era muito menor que a da sua principal concorrente, a Odebrecht.
França trabalhara por alguns anos com assuntos econômicos na Bolívia e participara de discussões sobre um ambicioso projeto de integração energética que previa a construção de duas usinas hidrelétricas no país vizinho, e que era acompanhado com interesse pela Andrade Gutierrez e pela Odebrecht.
Seu envolvimento com o assunto chamou a atenção das empreiteiras e foi o cartão de visitas que levou ao convite da Andrade Gutierrez, de acordo com pessoas que conviveram com o diplomata na época em que ele negociou sua contratação e no período em que trabalhou para a construtora mineira.
O chanceler ocupou uma das diretorias da área de assuntos corporativos e negócios estratégicos da empresa. Outro diplomata licenciado do Itamaraty nessa época, Rodrigo da Costa Fonseca, trabalhava no desenvolvimento de projetos da Andrade Gutierrez na África. Ele também não quis dar entrevista.
"França sempre se interessou pelo setor privado e achou que seria uma boa oportunidade", diz o embaixador Renato Mosca, seu chefe no cerimonial da Presidência da República no governo Dilma Rousseff (PT). "Apesar dos riscos com a Lava Jato, pensava que poderia se destacar lá por ter a ficha limpa."
A situação mudou radicalmente em junho de 2015, três meses após a chegada de França, quando a Polícia Federal prendeu o então presidente do grupo, Otávio Marques de Azevedo, e outros executivos, acusados de subornar políticos e funcionários de empresas estatais com as quais fizeram negócios.
A empreiteira logo se viu impedida de contratar com o setor público e sem acesso a crédito, deixando em segundo plano o desenvolvimento de novos projetos. Em 2016, ela fechou um acordo de leniência para colaborar com a Lava Jato em troca de punições mais brandas para seus executivos.
Como outras empresas atingidas pela operação, a Andrade Gutierrez continuou enfrentando dificuldades mesmo após a decisão de cooperar com as investigações. A reorganização do grupo para enfrentar a crise provocou o fechamento de várias áreas, inclusive aquela em que os diplomatas trabalhavam.
Procurada pela reportagem, a empresa não quis discutir em detalhes as atividades de França e limitou-se a afirmar por meio de uma nota que o chanceler participou "da transformação da companhia no que diz respeito ao seu posicionamento em relação ao mercado [...], baseada em rígidos padrões éticos".
As hidrelétricas que aproximaram França das empreiteiras começaram a ser discutidas pelo Brasil e pela Bolívia em 2003, no início do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), quando a então ministra Dilma Rousseff sugeriu que os dois países desenvolvessem um projeto em conjunto nessa área.
A ideia era aproveitar o potencial do rio Madeira, que nasce na cordilheira dos Andes e deságua no rio Amazonas, para atender à demanda crescente do Brasil por energia e ao mesmo tempo diversificar as fontes disponíveis na Bolívia, que sempre contou com depósitos de gás natural abundantes.
Em 2004, a Odebrecht buscou uma aproximação direta com o governo boliviano para iniciar estudos e sair na frente das outras empreiteiras se a ideia fosse para frente, mas a iniciativa não prosperou e foi abortada após a eleição do nacionalista Evo Morales como presidente da Bolívia, dois anos depois.
O Brasil tocou sozinho parte do plano e construiu duas hidrelétricas em Rondônia. Santo Antônio, que entrou em operação em 2012, foi construída e é operada até hoje por uma empresa da qual a Odebrecht e a Andrade Gutierrez são sócias. A outra usina, Jirau, é controlada pelo grupo francês Engie.
França trabalhou na embaixada brasileira em La Paz em duas ocasiões e envolveu-se diretamente com o tema na segunda passagem, quando um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro começou a trabalhar com os bolivianos para rever a ideia de um empreendimento conjunto.
"A turbulência que marcou a política no Brasil e na Bolívia nos últimos anos atrapalhou o projeto, mas ele faz sentido para os dois países e será inevitável retomá-lo um dia", afirma o professor Nivalde de Castro, líder do grupo da UFRJ, que chegou a publicar um artigo escrito a quatro mãos com França.
O centro do plano é a construção de uma nova usina na fronteira entre os dois países, perto de Guajará-Mirim (RO), com capacidade equivalente à das que foram erguidas em Rondônia. O empreendimento seria desenvolvido por uma empresa binacional, a exemplo de Itaipu, construída com o Paraguai.
França deixou a Bolívia no fim de 2011. De volta ao Brasil, passou a trabalhar no cerimonial da Presidência da República, mas continuou acompanhando o assunto de perto, dedicando-se a uma tese acadêmica no Curso de Altos Estudos do Itamaraty e atendendo a convites de empresas para palestras.
Aprovada com louvor em 2013, a tese atribui o fracasso das primeiras gestões da Odebrecht com os bolivianos à "equivocada decisão" da empresa de buscar um acordo com o país vizinho sem que houvesse "prévia negociação de acordo internacional", ou seja, sem incluir o Itamaraty na conversa.
A tese foi adaptada para um livro publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Itamaraty, no mesmo ano em que França se licenciou para trabalhar na Andrade Gutierrez. O diplomata escreveu a apresentação do livro nos dias em que arrumava as gavetas para se transferir para o setor privado.
No início de 2015, as empreiteiras já estavam na mira da Lava Jato, mas continuavam demonstrando interesse no assunto. Representantes da Andrade Gutierrez e da Odebrecht participaram de reuniões com Castro e outros pesquisadores da UFRJ nessa época para examinar as possibilidades do projeto.
Em julho de 2015, a Eletrobrás e a estatal boliviana Ende assinaram um memorando para iniciar estudos para construção da usina binacional na fronteira e de outra em Cachoeira Esperança, na Bolívia. Os trabalhos só começaram em 2017, no governo Michel Temer, e não foram concluídos até hoje.
Após sair da Andrade Gutierrez, França chefiou a divisão de ciência e tecnologia do Itamaraty e voltou a trabalhar no Palácio do Planalto. Com a troca de governo, assumiu a chefia do cerimonial da Presidência da República e ganhou a confiança de Jair Bolsonaro, abrindo caminho para sua nomeação agora.

Publicado em Thu, 08 Apr 2021 04:30:00 -0300







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