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Museu da catedral de Hagia Sophia volta a ser uma mesquita em Istambul

Por: FOLHAPRESS - IGOR GIELOW
10/07/2020 às 21:00
Brasil e Mundo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Por 1.483 anos, a magnífica Hagia Sophia habitou o imaginário de conquistadores dispostos a imprimir nela sua marca. Catedral bizant...


SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Por 1.483 anos, a magnífica Hagia Sophia habitou o imaginário de conquistadores dispostos a imprimir nela sua marca.
Catedral bizantina e centro do cristianismo ortodoxo, foi brevemente católica, por quase 500 anos uma mesquita e, desde 1935, um museu simbolizando a secularização da Turquia.
A igreja, até 1520 a maior do mundo, situa-se no coração simbólico de Istambul —a antiga Constantinopla, joia da coroa da expansão islâmica, que a tomou em 1453.
Agora, mais uma pessoa busca entrar em sua linha do tempo: o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que transformou nesta sexta (10) a Santa Sofia, ou Santa Sabedoria (seu nome latino), novamente em uma mesquita.
O Conselho de Estado, o principal tribunal administrativo do país, decidira uma hora antes que Erdogan poderia cumprir seu desejo. A corte havia deliberado sobre o tema por 17 minutos no dia 2 passado, sobre um pedido feito por uma associação religiosa próxima do governo.
Tribunais superiores turcos são alinhados ao poder central, o Conselho já tomara decisão semelhante sobre outro museu-igreja-mesquita em 2019 e Erdogan defende há anos a reconversão.
Após fazer o anúncio pelo Twitter, Erdogan pronunciou-se na TV. Disse que exerceu um "direito soberano" e que todas as pessoas, de todas as nacionalidades e religiões, poderão seguir visitando a agora mesquita. A primeira cerimônia religiosa será no próximo dia 24.
Restarão agora só as queixas, principalmente fora do país, começando pela rival histórica dos turcos, a Grécia.
A Igreja Ortodoxa Grega alertou que transformar a sua antiga sede patriarcal em uma mesquita em pleno século 21 seria uma "inaceitável violação da liberdade religiosa".
O premiê grego, Kyriakos Mitsotakis, disse que a decisão e uma "ofensa" que "afeta não só a relação entre a Turquia e a Grécia, mas também com a União Europeia".
Mas demandas gregas caem em ouvidos moucos na Turquia, como a divisão de Chipre atesta, mesmo ambos os países sendo parceiros na Otan (aliança militar ocidental).
A União Europeia também se manifestou como desapontada com a mudança.
Já da Rússia de Vladimir Putin vem um protesto mais nuançado. O patriarca ortodoxo russo, Cirilo, exortou Erdogan a deixar as coisas como estão, vendo "uma ameaça à espiritualidade e à história".
Após a decisão, o porta-voz da igreja, Vladimir Legoia, disse que o fato é "uma vergonha". "As igrejas ortodoxas deveriam ter sido ouvidas", disse, por mensagem eletrônica, à reportagem.
O Kremlin também pediu sabedoria ao misto de rival e aliado, dando a devida atualização geopolítica a uma disputa antiquíssima.
O Império Russo (1613-1917) rivalizava com o Otomano (1299-1923) não só estrategicamente, mas também culturalmente.
Constantinopla fora, até 1453, o coração do mundo ortodoxo —até hoje decisões do patriarca local, Bartolomeu, têm peso enorme, apesar de Cirilo ser o líder nominal do maior contingente do grupo, metade dos 300 milhões de fiéis da denominação.
Bartolomeu, que como patriarca ecumênico em tese fala por todos os ortodoxos, havia dito que a conversão iria "fraturar Ocidente e Oriente".
A ortodoxa Moscou herdou o banzo da derrota para os muçulmanos. A capital otomana era chamada pelos russos de Czargrad (cidade do czar), e se o país tivesse vencido a Guerra da Crimeia (1853-56) contra turcos e aliados europeus, talvez tivesse sido assim renomeada.
Voltando a 2020, há uma parceria turbulenta entre turcos e russos acerca dos rumos das guerras civis na Síria e da Líbia, onde apoiam lados opostos.
Fatores energéticos contam, como o recente gasoduto ligando os dois países demonstra. Apesar de quase terem se enfrentado de fato no começo deste ano, os turcos compraram sistemas antiaéreos sofisticados de Moscou.
Isso desagradou aos EUA, nominalmente aliados, que por sinal não estão nada felizes também com a retomada islâmica da Hagia Sophia.
O secretário de Estado, Mike Pompeo, foi a público pedir para que Erdogan reconsiderasse a ideia.
Como no caso grego, o americano foi ignorado e, agora, o governo americano se disse "decepcionado". O turco não perdoou Donald Trump por não ter extraditado o clérigo a quem ele acusa pela tentativa de golpe que sofreu em 2016.
O aniversário da intentona será na semana que vem, no dia 15. Nada melhor para Erdogan asseverar o poder que já exerce há 17 anos como principal ator político da Turquia.
Essa é a chave mais imediata da questão: Erdogan está com seu partido, o AK (Justiça e Desenvolvimento, na sigla turca), em baixa.
No pleito local de 2019, perdeu o controle de Istambul e Ancara, e dois ex-integrantes do governo lideram agremiações de oposição que buscam derrotar Erdogan em 2023.
Pior, eles apelam ao eleitorado mais religioso que forma a base de apoio do presidente.
A economia está em dificuldades devido à pandemia da Covid-19, que infectou mais de 200 mil turcos, logo quando se recuperava do tombo da crise monetária de 2018.
Ao longo de seu reinado, como premiê até 2014 e presidente, depois, Erdogan sempre usou sentimentos religiosos na hora da crise.
No poder, a islamização da sociedade e das instituições cresceu, para horror dos aderentes do caráter secular dado ao Estado turco pelo seu fundador, Musatafá Kemal Atatürk (1881-1938).
Além disso, Erdogan sempre buscou símbolos que o associassem à era de ouro otomana.
Recapturar simbolicamente o símbolo máximo da conquista islâmica, agora contra um duplo inimigo (o Ocidente e o secularismo), é um passo lógico.
Em 2016, foram feitas as primeiras preces islâmicas desde 1935 no prédio, e em 2018 o próprio presidente comandou um ato religioso na Hagia Sophia. Em 2019, pediu oficialmente a retomada.
Assim, aos 66 anos, Erdogan tenta beber na fonte do jovem sultão Mehmet 2º (1431-82), que com 21 anos conquistou Constantinopla após um cerco de 53 dias.
Na tarde de 29 de maio de 1453, Mehmet adentrou triunfante a arruinada cidade. Às portas da Hagia Sophia, fez um ritual de humildade e, ajoelhado, jogou terra sobre seu turbante.
Ao entrar na igreja construída de 532 a 537, sua primeira ação marcaria o próximo meio milênio: após quase matar um soldado que tentava arrancar mármores do piso, ordenou que um sacerdote entoasse a prece central do islamismo, a Shahada.
Hagia Sophia virou uma mesquita ali, e assim permaneceu até fevereiro de 1935.
No novembro anterior, Atatürk havia dado seguimento à sua política de ocidentalização do Estado que fundara em 1923, sobre os escombros do Império Otomano, derrotado na Primeira Guerra Mundial (1914-18).
Decretou que diversas igrejas convertidas virariam museu —a antiga catedral à frente delas. Aquela seria a terceira mudança de função do prédio.
Além da conversão em mesquita, em 1204 houve o que o historiador britânico Roger Crowley definiu como "um dos episódios mais bizarros da história cristã" em seu clássico sobre a queda de Constantinopla, "1453".
Cruzados venezianos tomaram a cidade dos bizantinos e estabeleceram um reino próprio, que durou até 1261. No período, Hagia Sophia foi uma catedral católica romana.
Do ponto de vista artístico, o movimento de Atatürk foi um sucesso. Mosaicos fabulosos escondidos por séculos de argamassa foram revelados, assim como seções ornamentadas de piso que passaram séculos sob carpetes de oração. Em 1985, o prédio virou patrimônio da humanidade.
O que ocorrerá com os mosaicos é uma dúvida. A mesquita grandiosa situada à frente do prédio, Sultão Ahmet ou Azul, nasceu deste modo em 1616 e lá está até hoje.
Turistas podem frequentá-la fora de horários cerimoniais, com os devidos cuidados religiosos. Mas lá não há mosaicos cristãos a ofender a sensibilidade de puristas islâmicos, como na Hagia Sophia.
Como parece impensável vê-los cobertos de novo, uma solução terá de ser encontrada.
A Unesco, órgão das Nações Unidas para cultura, disse "lamentar profundamente" a decisão e que irá revisar o status de patrimônio da mesquita, uma vez que pelas suas regras mudanças de função de prédios históricos precisam ser acordadas entre as partes —o que não ocorreu.
Antes da pandemia, o museu era a principal atração turística do país, com 3,3 milhões de visitantes em 2019.
O caldeirão multiétnico da região sempre teve no prédio um ponto focal. Como conta Crowley, só em 1853 os bizantinos passaram a ser chamados assim em língua inglesa.
Herdeiros do império centrado em Roma, do qual se separaram em 1054 no grande cisma cristão, faziam questão de se chamar de romanos, embora o grego fosse a língua franca na época da queda e seu imperador, meio sérvio e um quarto italiano.
O mesmo se via do lado vencedor, com a miríade de povos sob a bandeira otomana que vinham dos Bálcãs e da Ásia Menor. "Turco" era um modo europeu pejorativo de chamá-los.
Agora, Erdogan visa reforçar o caráter islâmico de uma sociedade que, como nos seus últimos 567 anos, vive entre dois mundos.

CRONOLOGIA
325 - Primeira igreja sobre templo pagão começa a ser feita
360 - Constantino 1º consagra a igreja
404 - Prédio queima em incêndio
415 - Igreja é reaberta
532 - Novo incêndio destrói a igreja, que é totalmente refeita com sua forma atual
537 - Justiniano 1º consagra o novo templo
558 - Danos maiores em terremoto
1204 - Vira igreja católica após saque de venezianos
1261 - Volta a ser ortodoxa grega
1453 - Constantinopla cai, e os otomanos transformam igreja em mesquita
1616 - Mesquita Azul passa a ser a principal de Constantinopla
1934 - Decreto seculariza a igreja, que vira museu em 1935. Mosaicos cristãos e peças arqueológicas são expostas, assim como o piso original, coberto antes por carpetes
1985 - Unesco declara prédio patrimônio da humanidade
2019 - Erdogan sugere volta ao status de mesquita
2020 - Corte dá o poder para Erdogan retomar a função religiosa do prédio, o que ele faz

Publicado em Fri, 10 Jul 2020 20:57:00 -0300







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