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Belgas querem derrubar estátuas de rei que colonizou a República Democrática do Congo

Por: FOLHAPRESS - ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
05/06/2020 às 21:00
Brasil e Mundo

BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) - Ele amanheceu desfigurado no jardim de um museu nesta sexta (5), em Tervuren, na Bélgica. Um dia antes, foi manchado de tinta verm...


BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) - Ele amanheceu desfigurado no jardim de um museu nesta sexta (5), em Tervuren, na Bélgica. Um dia antes, foi manchado de tinta vermelha em Bruxelas, Halle, Oostende e Gante. Na noite de quarta, foi incendiado em Antuérpia, e na cidade de Ghent sua cabeça apareceu vendada e amordaçada por uma faixa dizendo "Não consigo respirar", palavras finais de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco nos EUA.
Ele é Leopoldo 2º, que reinou na Bélgica de 1865 a 1909 e foi responsável pela morte de milhões de africanos nas décadas em que foi o proprietário da única colônia particular da história, onde hoje fica a República Democrática do Congo. Espalhados pelo país, seus bustos e estátuas viraram o alvo preferencial dos belgas que aderiram aos protestos pela morte de Floyd.
Estátua de bronze do rei belga Leopoldo 2º, ao lado do palácio real, em Bruxelas; esta versão, uma das muitas estátuas do rei controverso, foi esculpida por A onda antirracismo deu novo impulso a campanhas que há anos tentam depor as imagens públicas do monarca, por causa de sua história ligada a atrocidades na África.
"Não há estátuas de Hitler em pleno centro de Berlim; por que tenho que passar em frente a esse tirano todos os dias?", pergunta Simon Schoovaerts, uma das 47.164 pessoas que haviam assinado, até as 18h desta sexta, uma petição para tirar Leopoldo 2º das ruas.
Todos os dias Schoovaerts passa em frente a um Leopoldo 2º de bronze, montado a cavalo, de costas para o palácio real. De uma altura que ultrapassa 5 metros, a figura de barbas longas olha justamente para o bairro africano de Bruxelas, o Matonge (pronuncia-se matonguê), que concentra parte dos 120 mil residentes de origem congolesa no país.
"Ele matou o meu povo. Não é um herói", diz um deles, Glodie Kashala, que também assinou a petição lançada pelo grupo Vamos Reparar a História. O movimento pede a retirada das imagens até 30 de junho, quando a independência da República Democrática do Congo completa 60 anos.
Leopoldo 2º, que nasceu quando a Bélgica era um Estado havia apenas cinco anos, assumiu o poder aos 30 determinado a transformar seu país em potência imperial.
Sem conseguir empolgar os políticos que controlavam o governo, persuadiu os EUA e as principais nações europeias a reconhecerem como sua propriedade pessoal, em 1885, uma vasta área da bacia do rio Congo.
A única colônia pessoal do mundo foi chamada de Estado Independente do Congo, e Leopoldo 2º fez fortuna com o marfim do território. A brutalidade e voracidade desse período ficaram registradas no romance "Coração das Trevas", do polonês-britânico Joseph Conrad, que em 1890 navegou por seis meses pela região.
Uma segunda corrida, desta vez pela borracha, surgiu nos anos seguintes após a invenção do pneu inflável para bicicletas e o surgimento da indústria automobilística. Nas terras de Leopoldo 2º ficava a maior reserva natural de cipós do gênero Landolphia, de onde se extraía borracha, e o rei montou uma estrutura perversa para obtê-la em grande escala, conta o historiador americano Adam Hochschild, que escreveu o verbete sobre o rei na Encyclopaedia Britannica.
Soldados de seu exército privado formado por cerca de 20 mil africanos passavam de vila em vila, fazendo mulheres e crianças como reféns e obrigando os homens a entregar uma cota mensal de borracha.
Quando plantações de seringueira derrubaram o preço do produto, as quotas subiram, obrigando os africanos a caminhar semanas pela mata até conseguir reunir borracha suficiente.
Dezenas de milhares de congoleses abandonaram suas vilas para escapar do exército de Leopoldo, e outros tantos foram mortos em rebeliões frustradas. A produção de alimentos, a caça e a pesca despencaram, levando outros milhões de congoleses à fome e a doenças.
"Em 23 anos, esse homem matou mais de 10 milhões de congoleses", diz o texto do abaixo-assinado que circula na Bélgica. Segundo Hochschild, não há números precisos, mas as estimativas de demógrafos são dessa dimensão: de 1880 a 1920 metade dos cerca de 20 milhões de habitantes foi dizimada.
Pressionado, Leopoldo 2º abriu mão da propriedade particular em troca de indenização, e em 1908 a região passou a ser o Congo Belga. Sem herdeiros legítimos, Leopoldo 2º foi sucedido por seu irmão, Alberto, de quem descende a atual família real da Bélgica.
A independência da República Democrática do Congo veio em 1960 e seu nome atual foi adotado em 1964 (com um intervalo em que foi chamado de Zaire, de 1971 e 1997). O país é hoje o segundo maior da África em área e o quarto mais populoso, com cerca de 86 milhões de habitantes.
Apesar de ser considerado um dos países com mais recursos naturais e biodiversidade do mundo, está entre os menores índices de desenvolvimento humano e PIB per capita.
É também por causa desse legado que grupos querem ver desaparecer Leopoldo 2º, a quem chamam de "o rei destruidor", embora haja movimentos que critiquem a ideia de "apagar o passado" e defendam que os monumentos sejam vistos no contexto histórico em que foram erguidos.
Em Antuérpia, por exemplo, a estátua queimada havia sido devidamente acompanhada de informações sobre o passado colonial do personagem. Ainda assim, está marcada para ser removida em 2023, como parte dos planos de reforma do distrito de Eckeren, onde fica.
Em Bruxelas, o vereador responsável por patrimônio público no conselho municipal, o socialista Khalid Zian, disse que levará o pleito da petição à próxima reunião administrativa, na segunda-feira (8).
Mesmo que as petições tenham sucesso, a estátua equestre de Leopoldo 2º não se livrará de seu passado sangrento. Na parte de trás de seu pedestal, uma placa indica que o cobre e o latão usados na obra vieram do Congo, "gentilmente fornecidos pela União Mineira do Alto Katanga".

Publicado em Fri, 05 Jun 2020 20:35:00 -0300







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