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José Vitor Rack

Escritor e roteirista


Quando nós proclamamos a República

Por: José Vitor Rack
25/09/2019 às 10:10
José Vitor Rack

Ano 2000. Eu estava no segundo ano de Letras numa faculdade pública no período noturno, indo direto para o trabalho onde ficava até as sete da manhã. 

Eu atendia os telefonemas numa agência de moto-táxi do centro da cidade e com esse dinheiro, mais uma bolsa-auxílio que recebia da faculdade, sustentava minha casa. Estava cansado, esgotado, isolado dos amigos e sem perspectiva de vida. Meu pai morrera meses antes e eu ainda não superara o trauma.

No meio daquela correria em plena madrugada eu planejava meu futuro imediato. Queria ir embora do Brasil. Atendia os ansiosos passageiros e marcava as corridas. Nos intervalos entre uma chamada e outra, pensava para onde deveria ir. Onde será que a felicidade e a independência moram?

Inglaterra! Mas não falo inglês. Itália! Afinal eu estava fazendo Letras com habilitação em língua italiana... Bom, mas se o problema fosse o idioma, era melhor ir para a Espanha, já que eu dominava o idioma de Cervantes desde a adolescência.

Comecei a dividir esses questionamentos com um motoqueiro mais chegado. Ele fumava uma maconha lascada, mas dava bons conselhos de vez em quando. Um belo dia veio com uma história de um vizinho de sua sogra que fora para Portugal e ficara rico.

Portugal. Porta de entrada da União Europeia. Poderia me estabelecer lá e, depois, me perder dentro do continente. Trabalhar lavando pratos e fazer um curso de inglês britânico, mandar uma grana pra casa. Depois Londres e a independência financeira e cultural.

O cara se animou. Começou a falar de ir também. A gente poderia dividir um apartamento, em dois sempre se gasta menos e a solidão é menor. Um ombro pra desabafar é sempre bacana.

Um gaúcho muito maluco que também trabalhava conosco começou a se animar com a história. Também queria ir. A coisa começou a ficar séria e fomos nos unindo em torno desse projeto comum. Ficamos muito amigos, praticamente irmãos os três.

Falávamos de nosso Projeto Europa diariamente. Marcamos janeiro de 2001 como sendo a data do embarque. Comecei a procurar informações na Internet sobre locais para ficar, empregos para ilegais, etc. As poltronas do avião nos dariam felicidade, riqueza, esperança. Ilusão que inebriava.

O gaúcho fazia um bico durante o dia num laboratório e falou de nossas intenções com uma enfermeira que trabalhava lá. Ela também embarcou na loucura. Disse que seria a mulher da casa, faria nossa comida, trabalharia muito e melhoraria a vida dos filhos. Começamos a nos falar por telefone e já éramos quatro. 

O quinto elemento era outro enfermeiro que o gaúcho também conhecia de priscas eras. Gostou da ideia e disse que tinha duas amigas em Lisboa que poderiam morar conosco. Seríamos sete, mais dinheiro sobrando. A coisa estava séria.

Reservamos as passagens por telefone e começamos a juntar dinheiro. Os motoqueiros venderiam as motos e o enfermeiro venderia seu carro. Iríamos como uma família, unidos desde aqui para a nossa república.

Foi bonito. Durante uns sete meses tratamos de tudo com entusiasmo. Foi uma relação de respeito, amizade e auto-ajuda entre cinco pessoas que queriam dar um pé no Brasil e em sua injustiça, no tratamento desigual que ele dá a seus filhos. Muitas vezes choramos um no colo do outro, lamentando tanta infelicidade, tanta luta em vão. 

Mas não viajamos. A república proclamada não se concretizou. Nós, os farroupilhas unidos de modo quase que mágico, seguimos cada um por um caminho diferente. No Brasil. 

Eu, um Garibaldi perdido no tempo, não entendi. Assim como não planejei viajar com mais quatro pessoas, também não planejei que essa união se desfizesse antes de se consumar de fato. Foi um processo natural, orgânico mesmo. Como nasceu, morreu. Sem dor e sem traumas.

Era como se essa união pré-viagem fosse o suficiente pra gente aguentar o tranco mais um pouco. Fortalecemos-nos e seguimos na mesma. Ao dar as mãos uns aos outros, estávamos tratando as feridas que eram o motor que nos empurrava para fora daqui.

Outro dia vi o gaúcho no supermercado. Casado, com uma filha linda. Eu estava com minha sobrinha. Demos um abraço bem forte e ele me disse que nunca se esqueceria daquela época bonita, de desilusão e amor fraternal.

E eu? 

Acham que me esqueço?






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