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Cacau Lopes

Médico e professor da Famerp


Aghata no País da Delicadeza Perdida

Por: Cacau Lopes
24/09/2019 às 10:15
Cacau Lopes

Ontem foi um músico... negro. Já faz um tempo... uma mulher-guerreira... negra. Agora pouco... uma menina-sonho... negra. Eles não vão parar... enquanto não matarem todos e todas pelas costas, com um drone, pela mira de um snipers suspenso em um helicóptero de guerra, pelo fuzil de um militar quase negro ou quase branco protegido dentro de um Caveirão. A morte, para eles, é um gol.

Estamos presenciando uma guerra de extermínio contra os pobres, mulheres, LGBTQIs, índios, camponeses, esquerdistas, comunista, umbandistas, os do candomblé e mais todos aqueles aquelas outras que não se parecem com eles todos brancos, homofóbicos, machos, xenofóbicos, hetenormativos, TFPs normativos, cristãos-anticristo normativos e que odeiam quem não é espelho. Nesta guerra onde o inimigo é o outro diferente e que muda de acordo com o gosto do presidente, do governador e de suas milícias, polícias, exércitos, as balas não são perdidas. São balas econômicas, certeiras, precisas e que atingem alvos programados, planejados pelas máquinas de matar que ocuparam o poder do Estado e o coração de milhões de pessoas, cujo medo propagandeado por eles, faz com que elas desejem isto mesmo: — Matem a todos, desde que nos protejam!  

A percepção do Outro como um perigo que atenta contra minha vida, como uma ameaça mortal que coloca em risco minha segurança e que, portanto, deva ser eliminado, é o principal dispositivo que esta máquina de guerra assassina, racista e fascista inoculou em nosso imaginário, fazendo com que a gente acredite que o desejo deles seja, justamente, o nosso desejo: o desejo de morte do Outro. Mas quem é este outro? 

Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos, negro, atingido na cabeça, no Complexo do Chapadão. Kauã Rozário, 11 anos, negro, atingido por um tiro durante confronto entre policiais militares e traficantes em Bangu. Kauan Peixoto, negro, 12 anos, morreu baleado, quando estava indo comprar comida durante uma operação da Polícia Militar na Baixada Fluminense. Jenifer Cilene Gomes, negra, de 11 anos, foi atingida por um tiro na Zona Norte do Rio. Agatha Vitória Sales Félix, negra, 8 anos, morreu na madrugada deste sábado após ser atingida nas costas por um tiro de fuzil, no Complexo do Alemão.  

Este recorte de raça para decidir quem deve viver e quem deve morrer tem suas origens na época colonial-imperialista, onde as populações no mundo foram divididas entre os europeus-colonizadores-cultos-arianos e os povos negros-indígenas-escravos-quaseanimais. Estes, últimos, escravizados, eram mantidos vivos, mas em um "estado de injúria”, de meros sobreviventes, em um mundo de horrores, crueldade e violação dos seus corpos que não tinha fim, ou melhor, que tinha só um fim possível: a morte por esgotamento. Se estabelece, a partir daí, uma relação desigual, justificada racionalmente pela razão branca, onde o poder sobre a vida do outro assume a forma de comércio, de utilidade produtiva. É o soberano-tirano que decide quem deve viver e quem deve morrer. 

Achille Mbembe, um dos pensadores mais agudos da atualidade, descreve em um pequeno livro aquilo que ele denomina necropolítica, ou seja, esta política de morte que está nos sendo imposta nos dias de hoje pelo e através do Estado. Ao analisar a escravidão a que foram submetidos os negros africanos durante séculos, passando pelo holocausto dos judeus na Alemanha nazista, pelos conflitos entre israelenses e palestinos na faixa de Gaza, chegando aos conflitos étnicos até a execução de lideranças negras nas periferias do Brasil e do mundo, este historiador camaronês afirma que o que está em jogo é uma estratégia de poder que é o avesso da política, uma vez que o objetivo não é o de proteger a vida, mas exterminá-la.  

É este poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer que se instaurou no Brasil e de forma bastante cruel no estado do Rio de Janeiro. Estamos vivendo tempos da tanatopolítica, cujo objetivo é exterminar qualquer forma de vida, seja ela humana, fluida como as águas ou seres da floresta que fazem respirar a nossa mãe Terra. Tudo deve ser coisificado, transformado em mercadoria, material vendável, valor de troca. Os que não se enquadram, não se submetem, os loucos, os artistas, os improdutivos para a lógica deles devem ser mortos a bala, a ferro, a fogo e pela indigência causada pela destruição das políticas públicas. 

Aghata, a menina dos sonhos interrompidos, é a imagem desta mais crua crueldade que se instalou por aqui. Muitos irão dizer que a violência sempre existiu. Vão até buscar no pensamento de Hobbes a imagem de que "o homem é o lobo do homem” desde que o mundo é mundo. Só que, propositalmente, suas justificativas esquecem que, até para se contrapor a imagem do "bom selvagem” rousseauniana, Hobbes vai fundamentar a presença do Estado Moderno em função do seu papel de regular e "pacificar” esta predisposição egoísta para a guerra permanente entre os indivíduos-autônomos. Para Hobbes, é o surgimento de uma esfera pública regulada pelo Estado que vai, justamente, ser capaz de impor limites nesta autonomia-egoísta, dando lugar, assim, a uma liberdade responsável compartilhada. Esta é uma das bases da teoria liberal do Estado. A outra, além da mão invisível do mercado orquestrando as relações econômicas, é a da separação da esfera religiosa da esfera pública. Para os que são de direita, o que estamos vendo no Brasil, pasmem, é a morte do Estado liberal e o renascimento do Estado de exceção. 

O poder fascista-militarista que se instalou no Estado brasileiro, ao contrário deste papel civilizatória, é ele mesmo que instiga a violência contra os negros, os pobres, as mulheres, as populações indígenas e LGBTQIs, contra as pessoas de esquerda, contra as religiões de matrizes afro e todos aqueles que se colocam à sua frente resistindo em favor da vida. Ou seja, o Estado se transformou no maior patrocinador e propagandista, por intermédio da cloaca do presidente, da guerra entre todos, inclusive vendendo as armas.   
Aghata nasceu, viveu e morreu no país da delicadeza perdida. Aghata, morta pelas costas, não teve nem tempo e nem o direito de sonhar com uma país das maravilhas. Cabe a nós dizer um basta. 






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