O impacto da condenação e morte de Sócrates em Platão foi profundo e hoje
sabemos o quão odiosa se tornou a democracia para este pensador grego. Afinal, que
virtuosa Pólis era aquela que matou o mais sábio dos homens?
Para este filósofo, a
democracia tende a se corromper
em demagogia porque está à mercê da manipulação
retórica conduzida pelos
governantes. E esta tarefa ainda é auxiliada por sofistas que
liquidam a consistência objetiva
da verdade e corroem a realidade a partir de seus
simulacros discursivos. Esta
manipulação destrói a base objetiva da vida social e da
confiança. A vida se torna
dependente da opinião pública ou da maioria irresponsável e
volúvel. A democracia se
corromperia pela sua dependência precípua de sustentação na
veleidade de uma massa cada vez
mais licenciosa, ignorante e movida pelas paixões.
Por isso mesmo é que o legado
democrático é sempre a crise política esperando o
desfecho e a resolução vinda
pelos braços de um tirano ou salvador. É por estes motivos
que a visão política de Platão se
tornou execrável nos meios liberais e também nas
esquerdas.
Todavia, Platão é um autor
complexo tanto quanto sua crítica a esta forma
de governo. E sugerem alguns: não
seria uma ironia? E antes que o acusem de ser um
daqueles tipos conservadores e
bolsonaristas, lembremos também que do mesmo livro
que transbordam estas palavras,
saem outras exortações. A principal delas é que o
remédio para estes males estaria
numa sociedade hierarquizada e disciplinada. E se isso
só piora a caracterização
política de Platão, seu desfecho é interessante, pois advoga que
esta sociedade deva ser comandada
por um rei que seja ao mesmo tempo dirigente e
amante da sabedoria. Era o rei
filósofo, que só ganharia tal estatuto após uma vida
inteira de estudos. Com isso em
mente, podemos passar para nossas considerações.
Não podemos negar que a
democracia, sobretudo essa que temos e que não
passa de um arremedo frágil, de
fato não é mãe de todas as virtudes. As massas
ignorantes elegem seus
representantes e só. E o fazem no calor das circunstâncias e sob
as mais variadas formas de
manipulação. As duas principais são: o poder que o dinheiro
confere aos candidatos
pesadamente financiados e a construção e administração das
ideias que habitam a mente dos
indivíduos. Quem controla o dinheiro e as ideias nas
democracias capitalistas controla
o resultado do pleito.
A manipulação das ideias criou o
antipetismo e este elegeu Bolsonaro, o
mesmo que odeia e ataca
diuturnamente a democracia. Esta mesma democracia que
permitiu que ele chegasse ao
poder. E eleito foi e ainda o seria porque possui uma boa
máquina de propaganda que opera a
manipulação da verdade cuja eficácia está
assentada na boa fé e na
ignorância das massas. Ignorância, essa, criada e perpetuada
justamente pelo mau funcionamento
democrático da nossa república.
Tendo isso em mente, proponho um
desafio: usar Platão para interpretar o
Brasil atual. Em quê Platão
estaria correto?
Quando vemos que fakenews ou —
chamemos pelo nome as coisas — as
mentiras mais deslavadas orientam
políticas de Estado, como prescrição de tratamento
contra Covid-19; não uso de
máscaras ou isolamento; hostilidade contra a política de
vacinação; ataque ao currículo e
conteúdos escolares; políticas pedagógicas, etc. Enfim,
quando a manipulação da verdade
passa a ser a técnica demagógica do governante,
Platão parece estar certo.
Quando vemos que de um lado do
povo vozes gritam pelo pai infalível Lula
e de outro pelo pai mitológico
Bolsonaro, parece que a debilidade das crises da
democracia e apelo aos líderes
demagogos descritos por Platão estavam corretos. Mas
não nos enganemos, há demagogos
de centro também. E pior que estes só os frios,
insípidos e calculistas
tecnocratas dos mercados ou da administração pública. E por
isso, uma pitada de político por
vocação não faz mal a uma democracia sólida, como
bem sabia Max Weber.
Não há ilusões! Uma democracia —
sobretudo estas de fachada ou movidas
por uma oligarquia de bastidores
— fundada em massas ignaras pode produzir tantas
tragédias como a pior das
autocracias. Pois em nenhuma delas o poder será limitado
pelo uso da razão e princípio
universal e igualitarista do humanismo. Mas nenhum
destes casos é o caso brasileiro.
Vivenciamos hoje o pior dos cenários jamais
imaginados por Platão. O pior do
autoritarismo com o pior da vulgaridade demagógica.
O que é mais pernicioso para a
vida na pólis? Um governo autocrático de
um déspota esclarecido ou o
governo "democrático” de um déspota embotado? Falso
dilema e quase um sofisma. O que
precisamos mesmo é de uma democracia popular
exercida por um povo cultivado e
educado. O único problema é que o pressuposto para
que isso ocorra é que antes já
tenha ocorrido. Só assim as massas serão cônscias e
cultivadas e saberão o que fazer
com o poder a elas outorgado ainda que abstratamente.
Do contrário, continuarão inertes
e manipuladas ao sabor dos ventos. E que no limite
celebrarão de forma imunda e
ridícula o único exercício de poder que possuem a cada
dois anos: o poder de
alienarem-se do poder, seja para uma súcia de oligarcas da política
partidária, para plutocratas do
mercado ou, pior, para um ignorante qualquer cuja
campanha fora impulsionada por
mentiras e pelo ódio ardilosamente plantado contra
governos de esquerda. Afinal,
sempre souberam que o julgamento do povo é mais
rápido do que o julgamento dos
tribunais... Numa democracia quem controla o povo,
controla o poder. E o povo é
controlado, graças à carência material e intelectual, por
aquilo que Shakespeare descrevia como "o vil metal”.