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Azor Lopes da Silva Júnior

Advogado, professor universitário e jornalista


Ideologias e riscos à Segurança Pública

Por: Azor Lopes da Silva Júnior
18/09/2020 às 15:08
Azor Lopes da Silva Júnior

Historicamente é inegável a existência e a força das ideologias; sociologicamente e politicamente, ciência e ideologia se encontram em mundos distintos

O culto à ideologia vem separando e justificando guerras ao longo de toda a história da humanidade; hebreus dizimavam gentios na antiguidade, romanos lançavam cristãos na nova era, cruzados matavam hereges e inquisidores torturavam bruxas na Idade Média e, na modernidade, burgueses decapitaram nobres e, em seguida, proletários mataram burgueses; no século XX arianos quase exterminaram os primeiros donos da verdade: os hebreus (já então judeus, "o povo escolhido”) e, mais adiante, a "Guerra Fria” manteve as potências nucleares em constante estado de alerta, deixando a humanidade em clima de terror.

Cada um com sua verdade sempre buscou calar ou aniquilar os diferentes, não só porque eram diferentes, mas porque não se renderam à assimilação (em "Star Trek” seriam os Borgs); mas qual deles tinha o domínio da tal verdade? Qual a diferença e o limite entre a ciência e as ideologias? Essa relação promiscua pode ter reflexos na segurança pública?

Historicamente é inegável a existência e a força das ideologias (1); sociologicamente e politicamente, ciência e ideologia se encontram em mundos distintos: aquela no campo da indagação e do conhecimento e esta no da convicção e da ação política (2); enquanto a ciência se valida pela abertura aos testes de refutação quanto às hipóteses tomadas e métodos de sua comprovação e refutação, a ideologia se afirma pela dogmática de seus postulados irrefutáveis, pela retórica e pelas ações de marketing social. Assim, enquanto uma se submete ao crivo dos pares (a ciência) outra se impõe aos seus adeptos (a ideologia); nem por isso, aqui se demoniza a ideologia, ao contrário, se a reconhece na dimensão psicológica e sociológica como fenômeno de alinhamento de seres dotados de individualidade por afinidade de crenças e bases axiológicas semelhantes ou iguais, que evoluem ao campo político (partidário ou não).

O relativismo de algumas teorias sociológicas, tomado para afirmar que π seria uma construção social, chegou a ser usado por Sokal (3) e Bricmont no contexto das "guerras da cultura” para apontar a "fraude intelectual” daqueles que sustentam seus postulados de relativismo ideológico no argumento de autoridade (o poder de parcela dos "intelectuais” para impor suas ideias e seduzir adeptos).

A ciência busca a verdade, mesmo reconhecendo que ela se altera conforme avançam o tempo e o conhecimento humano; houve quando fazia sentido etimológico e científico dizer "átomo” como a menor partícula da matéria, mas a própria ciência se renovou ao descobrir outras partículas e, ainda, aquelas subatômicas; daí porque é forçoso afirmar que para a ciência não existe verdade absoluta, mas verdade conhecida.  O mesmo não ocorre no campo dogmático das ideologias, que se impõe imutáveis àqueles que as comunguem e depositem fé.

Não se pretende aqui negar a existência das ideologias, tampouco desacreditar o campo das ciências sociais e seu objeto de estudo, ao contrário, propõe-se um rigor metodológico semelhante àquele adotado pelas ciências exatas e naturais, obviamente não baseado em modelos matemáticos ou no método experimental, mas que os substitua – porque em regra inaplicáveis nas pesquisas sociológicas – por referenciais baseados na lógica e na história descontaminados de visões e crendices ideológicas.

Não é de hoje que o jurista Ives Gandra Martins (4) sustenta tese que, reafirmou (5) nos últimos dias e que foi tomada como fundamento para uma "intervenção militar constitucional” sobre a Suprema Corte pelas Forças Armadas, que operariam como um "poder moderador”, repercutindo até mesmo na imprensa estrangeira (6); chamado ao tema pela via da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6457, julgada em 12 de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal (7) afastou a absoluta impropriedade daquilo que fora sustentado por uma horda de ideólogos, insuflados pelo verborrágico autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, que arrasta legiões de ativistas pelas redes sociais (8) (o novo "Pasquim” reverso; porém muito mais rápido e poderoso nas ações da já antiga propaganda ideológica), como se pode ver em recentes perturbações da ordem pública travestidas em manifestações populares que chegaram a causar a deposição (9) do Subcomandante-Geral da Polícia Militar do Distrito Federal; esses movimentos se mostram tão orquestrados quanto os que se viram em 2013 com os "Black Blocks” a partir de um aparentemente inocente "Movimento do Passe Livre” (10).

Daí porque não se trata de enfrentar o tema Ideologia & Ciência: reflexos na segurança pública simplesmente por um viés poético e utópico – desconsiderada aqui a bandeira ideológica levantada – e, tampouco, de teorizar no campo acadêmico e judicial a desvairada hipótese de "intervenção militar constitucional” pelas Forças Armadas (e por que não se cogitar, nesse plano hipotético, até mesmo do emprego das polícias militares, como forças reserva); mesmo sem que esse pesadelo pudesse ocorrer, já são reais os eventos de convulsão social inflamadas pela propaganda ideológica.

Mudam-se os atores, as bandeiras e as justificativas, mas a ideologia sempre opera do mesmo modo: encerrando a busca da verdade com um "ponto final” (a sua verdade pela qual se apaixonou); já a ciência avança passo-a-passo, descobrindo a verdade possível no momento marcando essa etapa evolutiva com um "ponto e vírgula”, porque sabe que a busca é eterna e deve ser desapaixonada. Produzir "ciência qualificada” (ciência de fato) em "Segurança Pública” não poderia (ao menos não deveria) ser diferente...
  

1 Sobre "La production de l’idéologie dominante” por Pierre Bourdieu e Luc Boltanski, confira-se: "As ideologias, na medida em que são produzidas e reproduzidas por grupos sociais específicos, possuem uma grande função vinculativa e integrativa, a qual depende de sua capacidade de criar um senso de coesão sustentado coletivamente.” (SUSEN, Simon. Reflexões sobre a ideologia: as lições de Pierre Bourdieu e Luc Boltanski. Perspectivas, São Paulo, v. 49, p. 101-137, jan./jun. 2017).
2 BRANDÃO, Zaia. Indagação e convicção: fronteiras entre a ciência e a ideologia. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, p.849-856, set./dez. 2010.
3 "Sokal submeteu para publicação em uma revista humanística norteamericana, ‘Social Text’, um artigo em que colou uma série de exemplos de ‘absurdo e preguiça mental’ (‘nonsense and sloppy thinking’), todos extraídos de autores como Derrida e outros avatares do pós-modernismo — paródia do pós-modernismo em uma revista pós-modernista. O artigo paródico foi aceito e publicado simultaneamente à publicação de outro trabalho do autor, na revista Lingua Franca, em que descreveu a ‘experiência’, pensando ter demonstrado com ela a ‘preguiça mental’ dos pós-modernistas. O assunto virou matéria de primeira página do New York Times.” In: ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. Guerras culturais e relativismo cultural.  Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, outubro/99.
4 "E, por fim, no artigo 142, outorgou às Forças Armadas o poder de restabelecer a lei e a ordem, mediante solicitação do poder atingido, se houver invasão de sua competência por qualquer dos outros poderes.” (MARTINS, IVES Gandra da Silva. O ativismo judicial e a ordem constitucional. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 18 – jul./dez. 2011, p. 27).
5 Disse textualmente que "se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador” (Confira-se em: MARTINS, IVES Gandra da Silva. Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes. Revista Consultor Jurídico, 28 maio 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira. Acesso em: 30 ago. 2020; ver também: CARNEIRO, Mariana; SETO, Guilherme. Jornal Folha de S.Paulo, 18 maio 2020. Ives Gandra diz que atuação do STF pode fazer Forças Armadas intervirem no país. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/05/ives-gandra-diz-que-atuacao-do-stf-pode-fazer-forcas-armadas-intervirem-no-pais.shtml. Acesso em: 30 ago. 2020.
6 BENITES, Afonso; JIMÉNEZ, Carla. Bolsonaro invoca "intervenção militar” contra o STF e flerta com golpe. Jornal "El País”, Brasília e São Paulo, 28 maio 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-29/bolsonaro-invoca-intervencao-militar-contra-o-stf-e-flerta-com-golpe.html. Acesso em: 30 ago. 2020.
7 Destaco do Voto do Ministro Luiz Fux (atualmente Presidente do STF), então Relator do caso: "Por isso mesmo, a expressão "autoridade suprema” deve ser lida nos limites das atribuições privativas do Presidente da República contidas no artigo 84 da Constituição, em consonância com a tríade expressa em seu artigo 142. [...] Em uma leitura originalista e histórica do artigo 142 da Constituição, a expressão "garantia dos poderes constitucionais” não comporta qualquer interpretação que admita o emprego das Forças Armadas para a defesa de um Poder contra o outro. [...] Assim, inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder moderador: para a defesa de um poder sobre os demais a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes e seus mecanismos de realização. O conceito de poder moderador, fundado nas teses de Benjamin Constant sobre a quadripartição dos poderes, foi adotado apenas na Constituição Imperial outorgada em 1824. [...] Dessa forma, considerar as Forças Armadas como um "poder moderador" significaria considerar o Poder Executivo um superpoder, acima dos demais, o que esvaziaria o artigo 85 da Constituição e imunizaria o Presidente da República de crimes de responsabilidade, [...]”.
8 Confira-se em: FABRINI, Fábio; TEIXEIRA, Matheus. PF mira youtubers bolsonaristas em inquérito sobre ato pró-intervenção militar. Jornal Folha de S.Paulo, 03 maio 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/pf-mira-youtubers-em-inquerito-sobre-ato-pro-intervencao-militar.shtml. Acesso em: 30 ago. 2020.
9 CAMPOS, Ana Maria; SOUZA, Renato. Fogos no STF derrubam comando da PM. Jornal Correio Braziliense, 14 jun. 2020. Disponível em: Fogos no STF derrubam comando da PM. Acesso em: 30 ago. 2020.
10 COSTA, Leon Denis da; JUNQUEIRA, Ivanilda Aparecida Andrade. As manifestações públicas de 2013, black blocs e a Polícia Militar de GOIÁS. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP/Marília (ISSN 1983-2192), Ano 2018, Edição 22, Novembro/2018 (https://doi.org/10.36311/1983-2192.2018.v22n22.02.p19).






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