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Heitor Mazzoco

Jornalista


Banquete

Por: Heitor Mazzoco
17/10/2019 às 13:11
Heitor Mazzoco

O dispêndio em vida fora com futilidades carnais das mais prazerosas que posso lembrar. Com o tempo, na verdade, esqueci, pois os momentos de volúpia tornaram-se vagos poucas horas depois do acontecido.

Fui-me, quem diria? Duro e gelado, eu estou feito obra em exposição para os olhares dos que se despedem ou reparam com quantas rugas desencarnei. Fumei e bebi. Fumei muito e bebi muito.

Contava até horas atrás com 77 anos. Quando se lembrarem de mim (quem lembrará de mim?) vão repetir "foi-se aos 77 anos”. Uma combinação numérica bonita, forte. Gostei.

As pessoas estão aqui, uma após outra. Entram e fazem o sinal da Cruz. Quem são essas pessoas? Bom, já não posso agradecê-las por gastarem um pequeno período para um "adeus”. Ao levantar-me desta desconfortável caixa retangular cumprida causarei aumento dos batimentos do órgão central da circulação sanguínea. Com tal atitude, alguns desta sala acompanhar-me-iam numa jornada sem nexo.

Faz um sol tremendo. E, mesmo morto, começo a suar. Poderia ter morrido no inverno. Ao menos as pessoas fariam uma última visita bem vestidas. Mas não! Tem um ou outro com bermudas e, pasmem, até chinelos. Olha! Entrou um no recinto com regata cavada! Valha-me Deus!

Meus fios brancos estão penteados minuciosamente para trás! Para trás! Nunca penteei assim. Quando dependia de terceiros, meus fios castanhos ficavam para o lado. Obra de mamãe. Independente, não penteava mais e, agora, na dependência de estranhos, colocaram meu cabelo para trás. De uma coisa não me arrependo: nunca paguei plano funerário. Nem sei quem arcará com o transbordo, flores, luzes, coveiro. Espero que seja o Estado. Nunca gostei do Estado.

Deixo o recinto às 17h. Outra reclamação: morri num dia pacato. É feriado! Vejo no olhar do coveiro a cólera de um dia que estava programado para a bebida no bar. A cobiça entre os bichos será gigantesca em busca de alguma parte boa para devorar. Lá se vai a carcaça ser examinada por esta terra dura de 25 de janeiro. Deixo para lá. Sigo com minha alma. Ao menos não tenho mais a dor constante na sola do pé esquerdo ou nas costas.

Um imenso portão está diante dos meus olhos. Uma moça bonita e delicada sorri para mim. Eu, já velho, nada digo, apenas retribuo o sorriso. Ela diz que preciso aguardar para meus conhecidos, amigos ou parentes buscarem a minha alma para, enfim, eu atravessar aquele gigante portão.

Acredito que tenho um lapso para um cigarro. Não, não tenho! Olha lá a turma dirigindo-se ao portão. Estão cada vez mais próximos. Vejam só! É a turma que se vangloriava de dietas, de não colocar cigarro na boca, de não exagerar na bebida.






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